"Nossa cultura é a macumba, não a ópera. Somos um país sentimental, uma
nação sem gravata"
(Glauber Rocha)


domingo, 30 de junho de 2013

NA CONTRAMÃO DO FIM DA HISTÓRIA: POLÍTICA, MOVIMENTOS SOCIAIS E A RENASCENÇA DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO BRASIL

Matheus Felipe de Castro* A liberdade vai às ruas O mês de junho de 2013 será conhecido na história como o mês onde brasileiros e brasileiras de todas as cores, idades, gêneros, orientações sexuais, políticas e ideológicas foram para as ruas gritar, reivindicar e quebrar velhos preconceitos que rondavam a “personalidade” de um povo que se acostumou a reproduzir uma autoimagem de cordialidade e conformismo. Foi como uma maré que tomou conta das ruas brasileiras, (re)colocando povo onde antes só haviam carros, ônibus, fumaça e muita, muita indiferença. Uma indiferença que ocultava muita revolta e um sentimento incontido por anos de fazer avançar um pouco mais as suas instituições democráticas, há tanto desacreditadas pela sucessão de escândalos e uma aguda falta de participação efetiva nas estruturas de poder, a despeito do discurso democrático presente nas leis e na Constituição. Um sentimento difuso de revolta que pressionava por um movimento de grandes proporções sem líderes previamente escolhidos, com bandeiras e reivindicações difusas, mas sempre identificando o problema na política, local de resolução dos problemas que afligem a democracia e seus sujeitos, mas que estaria, no Brasil, sendo exercida de forma muito aquém aos verdadeiros anseios e desejos das maiorias sociais. E então a liberdade, esse impulso tão querido aos seres demasiado humanos irrompeu pelas ruas, praças, corações, mentes, ocupando as atenções dos espectadores acostumados a observar o óbvio, tornando-se uma energia que comoveu o país e o mundo ao responder “sim” ao velho questionamento de Machado de Assis: “A liberdade não é surda-muda, nem paralítica. Ela vive, ela fala, ela bate as mãos, ela ri, ela assobia, ela clama, ela vive da vida. Se eu na galeria não posso dar um berro, onde é que o hei de dar? Na rua, feito maluco?”. O advento da Nova República e da Constituição de 1988 prometeram espaços institucionais onde a política poderia tornar-se uma verdadeira trombeta pela qual o povo faria prevalecer seus interesses. Mas passados 28 anos, respeitados consideráveis avanços ocorridos, o povo brasileiro jogou-se às ruas, como “malucos” por democracia, dizendo aos berros que seus justos anseios já não cabiam mais nas galerias dos parlamentos, dos congressos e dos gabinetes que quase sempre permanecem longe, muito longe dos olhos atentos do povo de carne, osso e muito sangue nas veias. Alguma coisa nesse processo se quebrou. E a fratura exposta indicia o novo, a mudança, a necessidade premente de novos arranjos políticos e institucionais que deem conta das novas necessidades que se colocam em nosso horizonte político. Já não aceitamos e já não queremos a pecha de alegres conformados. Queremos levar nossa alegria para as ruas e para a democracia, que assim como a personalidade dos brasileiros, queremos que seja alegre, festiva, miscigenada e promotora do bem comum prometido em todas as instâncias do poder social, político e econômico. Uma contextualização necessária Mas não se pode jogar o bebê com a água do banho. Seria de uma irresponsabilidade flagrante. Há apenas 30 anos atrás nossos pais e avós estavam em luta contra a Ditadura Militar instaurada no Brasil em 1964 e que durou longos 21 anos. Um regime fundado no assassinato, no desaparecimento e na tortura de jovens, homens e mulheres em tudo semelhantes aos brasileiros e brasileiras que agora foram às ruas clamar por mais direitos. Quem eram nossos pais e avós que resistiram à Ditadura Militar? Eles, também se dividiam à esquerda e ao centro, entre radicais e moderados, mas o fato é que todos eles, à sua maneira, lutaram e se engajaram na luta pela redemocratização do Brasil. E entre eles, houveram aqueles que, armas em punho, lançaram-se inclusive à luta armada, doando seu sangue e suas vidas pela luta por uma causa justa. Eles levantavam bandeiras, quase sempre vermelhas e eram muitos, muitos partidos políticos, organizações que aglutinavam jovens que sonhavam um Brasil melhor e democrático para que qualquer um pudesse se manifestar com liberdade de exigir seus direitos. Por isso, quando estávamos nas ruas agora, em 2013, era com muita tristeza que víamos sujeitos estranhos em meio à massa exigindo à militância partidária que baixasse suas bandeiras, inclusive mediante imposição violenta. Logo contra eles que sempre estiveram na luta para que hoje inclusive os adeptos do antipartidarismo pudessem reivindicar suas pautas e exigir suas demandas. A democracia brasileira foi construída assim: com muita luta. Não foi uma dádiva ou concessão de nenhum governante. Foi uma conquista arrancada à Ditadura Militar mediante muita resistência. Conquista de espaços institucionais onde o povo poderia se ver representado, onde ele poderia levantar suas bandeiras, onde ele poderia gritar por mais liberdade e igualdade num mundo cada vez mais desigual e escravo das imposições financeiras de Wall Street. Daí que não se poderia simplesmente dizer que a política brasileira é composta de espaços sem valia ou serventia. Que esses espaços poderiam ser rasgados sem qualquer efeito negativo. A quem interessaria essa visão? A visão da terra arrasada? A visão que joga por terra aquilo que foi com sangue conquistado? O Movimento Passe Livre e um grito de liberdade Iniciei minha militância política no Movimento Passe Livre em Florianópolis no começo do ano de 2004. A campanha pelo Passe Livre já vinha desde o ano de 2000, através de um grupo fantástico de jovens idealistas que lutavam incansavelmente pela construção da tarifa zero. Esses jovens me receberam de braços abertos e me possibilitaram outra visão de mundo, da política e das formas de fazer política. Eu era então, como eles, estudante na Universidade Federal de Santa Catarina e por um bom tempo respirei os ares benfazejos daquele Movimento. Aprendemos em conjunto que o transporte coletivo é um serviço essencial prestado pelo Estado à população e que o modelo de transferência dessa responsabilidade à iniciativa privada por meio de concessões ou permissões acaba por desvirtuar o seu caráter de direito fundamental instrumental (ou seja, cumpridor de uma função social garantidora de acesso a outros bens e direitos constitucionalmente garantidos, como saúde, educação, trabalho, lazer e cultura) conferindo-lhe um caráter mercadológico (as empresas privadas são movidas pela lucratividade de um negócio sob o binômio maximização dos lucros com minimização dos custos, o que é = menos linhas e horários de ônibus com lotação máxima + tarifas elevadas) incompatível com a realização do bem comum. Aprendemos também que a grande beneficiária do sistema de transporte coletivo, mais que os seus usuários imediatos é a própria Economia de Mercado, que demanda a livre circulação da força de trabalho, dos capitais e valores que movem o comércio, a indústria e as finanças. E que, portanto, é extremamente injusto que o usuário imediato do sistema acabe arcando exclusivamente com os seus custos. Isso nos impôs a verificação, inclusive, da necessidade de uma reforma tributária com caráter progressivo, que transferisse a responsabilidade pelo funcionamento desse setor vital da economia para os bolsos daqueles que mais lucram com o seu funcionamento, pois de pouco valeria aos usuários do sistema deixar de pagar a tarifa do transporte na catraca para pagá-la na forma de tributos indiretos que penalizam os mais empobrecidos na sociedade. Aprendemos, enfim, que o problema que se coloca em nossa sociedade não é o preço da tarifa de transporte, mas a própria tarifa em si, eis que ela se constituiu num poderoso instrumento de controle social através do qual se mantém inclusive o poder sobre a circulação das pessoas nas cidades, institucionalizando guetos e mantendo a localização física das classes sociais nos locais que foram criados para elas, reproduzindo papéis sociais que tendem a se perpetuar no tempo e no espaço das cidades brasileiras. Uma tecnologia, como diria Foucault, de controle ou gestão dos corpos, onde não se controla mais (violentamente), mas se controla melhor, inclusive mediante o consentimento tácito dos controlados. Daí porque o símbolo do movimento nascido em Florianópolis sempre foi uma pessoa estilizada chutando (e quebrando) uma catraca em alusão ao lema do movimento “quebrando as catracas da vida!” ou “por uma vida sem catracas!”. Tivemos a oportunidade de aprender que a juventude brasileira estava cansada das formas tradicionais da política também tradicional. Que embora essa política das formas cristalizadas fosse importante (ninguém o negava), boa parte da juventude com ela não se identificava, demandando outras formas de organização, mais elásticas, que pudessem dar conta da alegria e da espontaneidade dessa fase da vida. Por isso é que o Movimento se constituía sob as bases do apartidarismo, sem antipartidarismos. Ou seja, o Movimento sempre respeitou os partidos políticos, compreendendo as suas importâncias na democracia representativa moderna, mas também entendia que para se constituir em verdadeiro “movimento” não poderia pertencer ou se identificar a um ou alguns partidos políticos nacionais, sob pena de se desvirtuar e acabar confundindo a sua bandeira principal: a luta pela tarifa zero. Um movimento em disputa Quando em junho deste ano o prefeito de São Paulo Fernando Haddad autorizou o reajuste das tarifas de transporte em R$0,20, dentro dos índices inflacionários, e a juventude do Movimento Passe Livre da Paulicéia Desvairada foi às ruas exigir a sua revogação, não foram poucos aqueles que clamaram para que o governo do Estado, representado na figura emblemática de Geraldo Alckmin, governador do PSDB de Fernando Henrique Cardoso e ex-candidato à Presidência da República, usasse a sua polícia para conter os “baderneiros”, os “arruaceiros” que estavam atrapalhando o sagrado direito dos cidadãos de “bem” de ir e vir com seus automóveis pela cidade. O Governador, que já utilizara o mesmo recurso no despejo forçado da comunidade do Pinheirinho e na desocupação da USP, tomadas pelos estudantes, não tardou em determinar que a sua polícia reprimisse duramente os manifestantes. Desacostumado com os processos negociados da democracia, o Governador não imaginava a reação em cadeia que essa violência policial provocaria, levando não só milhares de paulistanos às ruas para se somar aos manifestantes, mas desencadeando a ida de milhões de brasileiros e brasileiras às ruas de todo o país, de norte a sul e de leste a oeste. O político que um dia sonhou ser presidente do Brasil, não imaginou que um ato seu como Governador de São Paulo pudesse ter um alcance tão nacionalizado como o que se viu. Embora os neomanifestantes não entendessem muito bem porque estavam indo às ruas, o fato é que expressavam um sentimento de revolta a esse tipo de ação violenta, não negociada, que a despeito do discurso constitucional da soberania popular, nos momentos de crise acaba por lançar mão do aparelho repressivo do Estado como “intermediador” das crises populares. Um triste modelo implementado no Brasil com muita eficiência durante os dois governos nacionais do PSDB, que controla a desigualdade econômica aprofundada pelo neoliberalismo com o controle policial dos excluídos: um Estado que fortalece os seus aparelhos de controle na mesma proporção em que enfraquece os seus aparelhos sociais e econômicos. Quando o caldo já havia entornado e a parcela conservadora da mídia brasileira já havia percebido que se tratava de um movimento sem lideranças e com bandeiras difusas, uma poderosa operação de manipulação do movimento foi iniciada, com conservadores de plantão – que na véspera clamavam pela repressão policial – voltando atrás em seus discursos, agora elogiando os manifestantes como verdadeiros democratas populares. Não tardaram também em iniciar a operação de inserção de suas próprias bandeiras no movimento, como foi o caso da PEC 37 (uma luta corporativa entre o Ministério Público e as Polícias Judiciárias brasileiras para determinar qual categoria terá mais poder no aparelho repressivo do Estado) e até mesmo, um artificial impeachment da Presidenta Dilma Rousseff que, se não colasse, ao menos anteciparia o debate eleitoral de 2014, renovando a chamada política de “jagunço”, que se não mata imediatamente deixa sangrando até as próximas eleições. Essa operação foi em parte bem sucedida porque conseguiu desviar as atenções sobre o Governador Geraldo Alckmin e seu partido, o PSDB (que terá um de seus quadros, o Senador Aécio Neves, como principal candidato de oposição nas eleições gerais do ano que vem), provocadores das grandes manifestações mediante a desastrada repressão policial que autorizaram. Em consequência a Presidenta Dilma Rousseff e seu partido, o PT, acabaram arcando com boa parte da “impopularidade” naturalmente provocada por manifestações como essas para quem está efetivamente no governo. Daí que agora, já com um pequeníssimo afastamento histórico dos fatos, se pode perceber que se tratou de um movimento em disputa, onde as esquerdas saíram em desvantagem eis que se acostumaram à normalidade da institucionalidade, perdendo boa parte do contato com o povo que sempre cultivaram, o que deixa um recado claro para quem queira atuar à esquerda do espectro político nacional: a administração do Estado burguês não pode apagar a lembrança da existência da luta de classes no seio da sociedade e todo partido ou indivíduo pertencente a esse campo deve ter clareza que, sem base social efetiva, sua atuação se esgota em médio prazo por absoluta falta de oxigenação com os movimentos sociais, o que leva à burocratização e cooptação de quadros para os encantos proporcionados pela democracia liberal-burguesa. Decifrando as bandeiras de luta Não somente a luta pelo transporte gratuito ou ao menos barato e de qualidade, mas muitas outras reivindicações levantadas pelos manifestantes de junho de 2013 como saúde mais eficiente, educação pública de qualidade, melhorias no planejamento das cidades e até responsabilidade fiscal e controle efetivo dos investimentos públicos está a indiciar que os brasileiros estão mesmo na contramão do “fim da história”. Enquanto as políticas do receituário neoliberal se alastraram nos EUA e na Zona do Euro, principais afetados pela crise econômica iniciada em 2007/2008, como forma de resolver os graves problemas sociais gerados pela crise – um remédio que mata mais do que a doença, porque criador do ambiente propício ao alastramento da patologia – no Brasil tudo parece se operar diferente. Aqui, em nossas terras, a crise mundial tem sido contida até agora, diferentemente dos países do Centro do Capitalismo, com o avanço de políticas sociais e econômicas anticíclicas, com aquecimento da demanda por bens de consumo através do incremento do poder de compra das classes tradicionalmente mais empobrecidas e por toda uma sorte de políticas que compõem não o receituário neoliberal, mas o keynesiano, do Estado de bem-estar social, aquilo que Engels chamou de Capitalista Coletivo Ideal, um Estado capaz de gerenciar as crises do capitalismo, construindo uma condição de relativo equilíbrio e prosperidade mesmo que isso implique ir contra os interesses imediatos das classes mais abastadas e beneficiadas com as benesses da Economia de Mercado. Bandeiras que ora se veem levantadas pelos povos da Zona do Euro contra a privatização de serviços públicos e o sucateamento dos seus sistemas de Direitos Fundamentais de segunda e terceira gerações, há muito não reverberam no Brasil, eis que foram agendas regressivas relativamente abandonadas nos últimos 10 anos em nosso país. As bandeiras levantadas pelos manifestantes brasileiros reivindicavam, ao contrário, o aprofundamento das políticas do Estado de bem-estar, demonstrando que o povo está, por um lado, satisfeito com as diretrizes que vem sendo implementadas, mas insatisfeito com o ritmo das mudanças e o aprofundamento dessas medidas. Ou seja, indiciam que os brasileiros creem que a política ainda é uma forma eficiente de transformação social e que ela ainda pode dar muito mais ao povo em termos de construção de um tão desejado Welfare State, agora na periferia do mundo capitalista. Essa constatação deve servir tanto para enaltecer quanto para criticar a política que vem sendo executada no Brasil nos governos do PT e de seus aliados. Enaltecer o rumo acertado das diretrizes mudancistas e criticar o ritmo lento de suas realizações. Enaltecer a importância da realização de políticas sociais e criticar a sua “universalização ainda restrita”. Enaltecer a coragem de uma agenda anticíclica que vem dando resultados importantes na contenção interna da crise mundial e criticar a falta de aprofundamento da participação popular nas estruturas de poder social, político e econômico de um Estado tradicionalmente autoritário, implementadas ainda muito lentamente por um campo político que sempre se orgulhou de ter nascido do seio do povo e das lutas sociais no Brasil. Enfim, enaltecer sim um passado de tantas lutas, mas permanecer atento para o relevante fato que a luta política não é feita somente de passado e que o presente é agora! *O Autor é Doutor em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, professor adjunto do Departamento de Direito da mesma Instituição, professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Direitos Fundamentais da Universidade do Oeste de Santa Catarina-UNOESC e co-fundador do Movimento Passe Livre em janeiro de 2005, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. E-mail: matheusfelipedecastro@gmail.com.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Por que o Judiciário está na berlinda?

Entrevista do Professor Matheus Felipe de Castro ao Centro de Estudos e Pesquisas em Trabalho Público e Sindicalismo e SINJUSC 1 - A sociedade brasileira precisa debater o Poder Judiciário? Por quê? R: A sociedade brasileira precisa debater o Poder Judiciário porque ele é uma das instâncias privilegiadas da definição das diretrizes políticas nacionais. Ninguém mais acredita ou sustenta que o Poder Judiciário seja uma instância meramente técnica ou neutra no Aparelho de Estado ou num Governo. Ao contrário, o Judiciário exerce uma parcela privilegiada do Poder de Estado, tendo a faculdade, inclusive, de se sobrepor, em tempos de democracia, às decisões do Poder Executivo e também do Legislativo. Estamos vivendo tempos de grandes transformações comportamentais na sociedade. E o Poder Judiciário tem se manifestado ativamente sobre estas questões. Racismo, livre orientação sexual, relações de gênero, família e relacionamento com os filhos, formas eleitorais, relações partidárias e parlamentares, posse e propriedade, ou seja, nada, absolutamente nada passa hoje ileso ao crivo do Poder Judiciário, redefinindo as próprias formas de convivência numa sociedade historicamente dada. 2 - Há, nos meios de comunicação de massa, sinalizações críticas do Poder Judiciário. A sociedade brasileira deve entender que já ocorre, através da mídia, um desvelamento e uma mudança no Poder Judiciário? R: A mídia vem pautando um sentimento hoje generalizado de que o Poder Judiciário precisa mudar, precisa se abrir à democracia. Ele é o Poder de Estado menos transparente, porque, dentre outros fatores, os métodos de escolha de seus membros não se operam pelas mesmas formas que dos demais. Isso gera, em seu seio, uma visão elitista de mundo, que coloca os seus membros como uma espécie de casta de notáveis, enquanto os outros poderes seriam compostos em sua maioria por "ignorantes", "analfabetos" e "corruptos", o que é apenas uma parcela da verdade, mas não toda ela. Ora, o Poder Judiciário também tem suas mazelas: a corrupção não é monopólio do Legislativo e do Executivo, também perpassando o Judiciário, sendo, a bem da verdade, um fenômeno presente em toda a sociedade civil, refletindo concentradamente nos órgãos de poder. O isolamento dos seus membros e os seus altos salários geram certa ignorância para com os problemas reais do povo real, que acessa o Judiciário preferencialmente pela porta de entrada das Varas Criminais. A decisão em casos concretos isolados gera uma ilusória sensação de justiça, quando os problemas sociais subjacentes são mantidos ou até mesmo potencializados. Dessa forma, já se iniciou, na sociedade civil, uma transformação de consciência, exigindo a democratização do Judiciário, embora ainda hajam resistências profundas dentre os seus membros em geral à mudança. 3 - Como os trabalhadores, os desempregados, as mulheres, os jovens, enfim, aqueles que não estão em qualquer poder, podem participar para um Poder Judiciário que atenda a sociedade? R: O povo real, os trabalhadores, as mulheres, os negros, os jovens os excluídos, as "minorias" (que na verdade são as maiorias sociais) só aparecem no poder retoricamente na Constituição brasileira que afirma que "todo poder emana do povo e em seu nome é exercido". Mas na realidade, ninguém vem se sentindo representado, quanto mais vem se sentindo proprietário do poder. Ao contrário, vivemos uma profunda crise de representatividade de todos os Poderes da República, e a crise do Judiciário parece ser apenas uma faceta dessa crise mais geral. Na verdade, a própria tripartição do poder estatal e a estrutura clássica do Estado moderno estão esgotadas para dar conta das necessidades do povo, indiciando que os Estados reais estão mais preocupados em defender os interesses de pequenas minorias elitistas (econômicas, financeiras e políticas) do que em superar antigas e cristalizadas vulnerabilidades e disparidades que abalam a convivência social. Mas a democracia e a participação efetiva do povo no poder não são algo pronto e acabado. Ao contrário, são processos em construção constante e que ainda demandarão longas lutas com a finalidade de transformar as relações de poder social. E a democratização do Judiciário passará pelo mesmo processo geral. 4 - Afinal de contas, qual o Poder Judiciário que queremos? R: Gostaríamos de ter um Poder Judiciário que fosse elemento ativo da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, economicamente desenvolvida e politicamente democrática. Mas para que isso possa ocorrer, o Judiciário precisa participar da vida do povo real. As profundas disparidades internas (pobreza, miséria, adoecimento, fome, etc.) e as crônicas vulnerabilidades externas (subdesenvolvimento econômico, político, militar, diplomático, etc.) não poderão ser superadas sem que todos os Poderes do Estado, inclusive o Judiciário, se apropriem e defendam a realização da ideologia constitucionalmente adotada, que é a da construção de um Estado de bem-estar social extremamente avançado. A união dos poderes de Estado, comandados de verdade pela vontade popular, é fundamental para que possamos construir a nação melhor que a Constituição projetou para o futuro. Enquanto o Judiciário continuar aferrado ao formalismo processual, à visão estrita de defesa da propriedade privada não-funcional, e a solução dos problemas sociais através do direito penal e do aparelho repressivo de Estado (criminalização da vida + prisonização da sociedade), continuaremos presos à visão clássica do Estado (e do Judiciário) como meros fiadores da lógica do capital, o que queremos superar. Matheus Felipe de Castro Professor do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais da UNOESC e Advogado criminalista

quinta-feira, 25 de abril de 2013

REVISÃO DAS DECISÕES DO SUPREMO: UMA POLÊMICA

Sempre que uma novidade atinge nossos velhos preconceitos acaba por causar dor e desconfiança. Albert Einstein reclamava de um mundo onde era mais fácil quebrar o núcleo de um átomo do que um preconceito. E quando a matéria diz respeito ao funcionamento do Poder Judiciário, um órgão de exercício e legitimação do Poder do Estado, os juristas, ideólogos especializados em eufemizar a natureza oculta desse exercício, são os primeiros a sair em defesa das “instituições democráticas” constitucionalmente estabelecidas. Eu que não tenho compromissos com os Poderes Estabelecidos, estou ao lado daqueles que poderiam ser chamados de os “descamisados do poder”, não me preocupo nem um pouco em tentar sair por aí defendendo a manutenção do Poder dos Juízes. E quando se trata de triscar no poder deles, todos saem às ruas conclamando o povo a uma cruzada em defesa da “democracia”. Pois bem. Mas então, a proposta do Congresso Brasileiro de criar instrumentos de revisão das decisões do Supremo Tribunal Federal não deve ferir tanto assim a dita “separação dos poderes”. Se os juízes podem se meter nas decisões dos outros dois poderes sem que haja violação daquela separação, por que razão se outro poder (e não é qualquer poder, mas aquele que é composto pelos representantes ELEITOS pelo povo, palavra que no Judiciário causa arrepios!) se meter nas decisões deles haverá tal violação? Claro que quem leu até agora o meu escrito está dando pulos de raiva. Esse aí não conhece nada da lei e do direito nacionais! Está falando uma besteira. Ocorre que eu pontuei desde o início que meu compromisso não era com os preconceitos pré-estabelecidos pela Ordem e pelo Direito. E talvez não o seja nem com o Congresso Nacional, que igualmente pouco representa os seus eleitores. Porque, ao final, o que está em jogoé uma luta interna ao aparelho de Estado para ver quem deterá a hegemonia política do momento. O fato é que não quero cair numa polêmica bipolarizada por um maniqueísmo. Vamos fazer assim: se o Brasil é verdadeiramente uma democracia, se aqui todo o poder emana do povo, como diz a Constituição, vamos fugir desse debate e vamos propor que a última palavra seja do povo? Que as decisões dos três poderes fiquem sujeitas, mediante convocação, a plebiscito nacional sobre a sua validade? Ah! Mas isso não pode? Talvez não possa porque na nossa atual “democracia” o “demo” esteja totalmente esquecido e a “cracia” hipertrofiada e disputada corporativamente pelos integrantes do aparelho de Estado. Não votei nos meus juízes, mas gostaria de elegê-los e que tivessem mandatos fixos, como ocorre no Conselho de Estado Francês. Afinal, já que agora eles se meteram a “violar” sistematicamente a separação dos poderes, se arrogando o papel de legisladores, deveriam ser eleitos e não reclamar que o “feitiço tenha se voltado contra o feiticeiro”.