"Nossa cultura é a macumba, não a ópera. Somos um país sentimental, uma
nação sem gravata"
(Glauber Rocha)


domingo, 29 de maio de 2011

Discurso proferido no I Congresso Internacional de Direito e Marxismo

O PROJETO DE DESENVOLVIMENTO NACIONAL DA CONSTITUIÇÃO DE 1988, NA PERSPECTIVA DO SOCIALISMO

Por: Matheus Felipe de Castro*

Conferência pronunciada no I Congresso Internacional de Direito e Marxismo, em Caxias do Sul/RS, aos 28/03/2011

Senhoras e Senhores: é uma grande felicidade participar de um evento inédito no Brasil como este. Com certeza será o primeiro de muitos e, no futuro, poderei dizer que estive presente neste momento tão importante da história. Por outro lado, é uma grande responsabilidade falar entre os mestres de uma vida toda, professores Michel Miaille, Oscar Correas, Antônio Wolkmer, dentre tantos outros. Só posso agradecer aos organizadores pela oportunidade que me concederam.

Estamos num congresso sobre marxismo e direito e não poderíamos iniciar esta fala senão mergulhando naquilo que é o núcleo da teoria da práxis, uma teorização engajada na transformação efetiva do mundo: “Os filósofos de todos os tempos pensaram o mundo. A questão agora é transformá-lo”, já dizia Marx em sua famosa 11ª Tese sobre Feuerbach.

Ora, cada época histórica tem suas próprias conjunturas, suas próprias formas de luta. O marxismo, como instrumento de luta, parte da análise concreta da situação concreta do Modo Capitalista de Produção, que também não é homogêneo, mas ditado por circunstâncias nacionais, geopolíticas, culturais, dentre tantas outras.

As formas de luta não são aquelas que queremos ou escolhemos, mas as que as condições objetivas colocam à nossa frente. Portanto, fugindo de todo idealismo, nós, juristas engajados com a transformação efetiva da sociedade em que nos inserimos, vivemos nos perguntando: teria a constituição jurídica algum papel emancipador num regime dominado pela lógica do capital?

Minha resposta é: NENHUM! A constituição não são meras folhas de papel (F. Lassalle) e se assim for vista, não passa de um documento morto, sem vida. A constituição não é uma coisa, mas uma relação social viva e juridicizada e mais que isso, uma relação de poder entre as forças sociais em embate numa sociedade concreta.

A constituição pode ser um instrumento emancipador para um povo se ela é apoderada como tática concreta de luta por forças sociais interessadas na mudança. Forças sociais que a utilizam como uma tática em prol da realização de uma estratégia, ou seja, um caminho que se vai construindo com o caminhar para a efetivação da meta traçada.

Ela, a constituição, se realiza mediante a luta concreta de homens e mulheres, dos movimentos sociais e dos partidos políticos compromissados com a transformação social para um mundo melhor. Portanto, o que muda o mundo são os homens, não os textos, que são o produto da significação que damos ao mundo que nos cerca.

Diante disso, caberia perguntar, afinal, o que é a Constituição de 1988? Por acaso seria um retrato da realidade brasileira existente naquele momento, ao fim da Ditadura Militar? Ou seria a expressão do horizonte de aspirações possíveis que um povo se deu num momento histórico, como queria o grande Celso Furtado? Um projeto para o futuro e não um retrato do passado.

Os constituintes de 1988 diagnosticaram uma sociedade marcada por profundas disparidades internas e crônicas vulnerabilidades externas, que fazem sofrer ao povo brasileiro na medida em que atravancam o desenvolvimento nacional, a consolidação da soberania e a realização dos ideais democráticos, políticos e econômicos.

Diante desse diagnóstico, traçaram um avançado projeto de superação dessas condições arcaicas, como futuro radiante de um povo que há 500 anos luta pelo seu lugar ao sol, pela superação de sua condição subdesenvolvida e dependente, num mundo dominado por grandes potências imperialistas e pela exploração capitalista.

Pergunto: esse horizonte de aspirações, traçado na Constituição de 1988, pode jogar algum papel na construção de uma sociedade soberana, desenvolvida, livre, justa, solidária e por que não, socialista? Quero acreditar que sim!

O Brasil é uma nação saída do colonialismo, formada a partir do velho esquema assimétrico de poder centro/periférico e sofre até os dias atuais com as heranças do passado: fome, pobreza, marginalização, analfabetismo, desigualdades sociais e regionais, desemprego, etc.

O projeto de desenvolvimento nacional previsto na Constituição de 1988 é um projeto tático que cria condições para superar esse quadro de profundas disparidades internas e vulnerabilidades externas que fazem sofrer o povo brasileiro.

Tanto isso é verdade que a CF/88 foi violentamente atacada pelo neoliberalismo, recortada e remendada mediante dezenas de emendas constitucionais que tentaram alterar o seu significado para a nação e o povo brasileiros.

Mesmo assim, esse ataque não foi capaz de alterar o seu sentido, porque mudam-se os textos legais, mas os sentidos, os significados são dados por nós, pelas nossas aspirações e compreensões do mundo, pela nossa luta concreta em torno da superação de nossos desafios.

Inclusive, o presidente da República, Sr. José Sarney, à época, assinou a carta de 1988 resmungando: “tornará o país ingovernável”, profecia que acabou não sendo realizada. É que a grande contradição da Constituição de 1988 foi ter nascido com inspirações keynesianas num momento de ascensão do neoliberalismo.

Mas a história não acabou, como queria Fukuyama! O mundo deu voltas e mais voltas. O poderio norte-americano entrou em tendencial declínio. O mundo tendeu do bipolarismo da Guerra Fria e do unipolarismo neoliberal ao multipolarismo depois da recuperação das economias alemã e japonesa, e principalmente do ascenso da China, da Índia, da Rússia e, agora, do Brasil, ocupando posições de destaque no conserto das nações.

O Brasil realizou esforços consideráveis para superar, ainda que relativamente, a herança neoliberal: muito ainda há por fazer. Construiu, principalmente na última década, as condições materiais para a realização do projeto tático de bem-estar social que a Constituição de 1988 previu.

O desenvolvimento é fundamental para o Brasil romper seus velhos laços de subdesenvolvimento e dependência, possibilitando a construção de uma sociedade auto-determinável. Ele, o desenvolvimento, sacode e altera as velhas correlações de força na sociedade e permite ao país romper a velha submissão ao imperialismo, principalmente norte-americano, que nos assola há mais de século.

Agora à pouco eu me referia ao esquema centro/periférico e é necessário dizer que o capitalismo brasileiro, como nos ensinou Celso Furtado, não se formou somente através da lógica capital x trabalho, mas também através da lógica centro/periferia e eu não tenho dúvidas que o imperialismo que daí deriva é o maior inimigo dos povos que querem encontrar o seu próprio caminho, inclusive para além do capital.

Senhoras e senhores: eu não tenho dúvidas que o projeto de desenvolvimento nacional da Constituição de 1988 é um projeto de bem-estar, portanto, com natureza tática. Mas também não tenho dúvidas que, implementado imediatamente no Brasil, tem potencial verdadeiramente emancipador para o povo brasileiro.

A Constituição brasileira não prometeu o socialismo, como o fez a Constituição portuguesa. De nada adiantaria fazer meras promessas! A questão é passar ao ato, à práxis de transformação revolucionária da sociedade, que nenhum texto morto é capaz de promover ou impedir.

De qualquer forma, a Constituição previu profundas alterações qualitativas para a sociedade que abrem caminho para a construção da alternativa socialista. Não somos adeptos da teoria do “quanto pior melhor”. Pelo contrário, o povo brasileiro quer qualidade de vida e bem-estar, o que só será alcançado se o projeto constitucional for percebido em sua natureza tática, mergulhando e tomando de assalto o coração das massas.

E se uma ampla coalizão de forças populares for capaz de comandar o Estado brasileiro, democratizando-o, fortalecendo-o em seus instrumentos de intervenção econômica, em seus instrumentos previdenciários e sociais e, enfim, em seus instrumentos redistribuidores, colocando-o (o Estado) como instrumento do povo, para o povo e pelo povo real, não tenho dúvidas que poderemos ganhar os corações e as mentes do povo brasileiro para a grande ruptura que se faz necessária.

Portanto, a constituição não é, definitivamente, uma coisa. Ela é um processo de profundas transformações nas relações de poder. Ela não é uma coisa, mas uma luta e uma meta a ser alcançada porque na atual conjuntura o projeto dela representa melhorias reais na vida do povo brasileiro.

As constituições nascem para morrer. Não devem ter vida eterna. Por isso, precisamos, enfim, realizar a Constituição de 1988 para que seu projeto tático se torne obsoleto e coloque a necessidade um novo projeto civilizacional ainda mais avançado que aquele que está ali previsto, ou seja, a necessidade de uma nova constituição, quem sabe, se formos fortes o bastante para isso, uma constituição socialista!

Muito obrigado a todos e a todas.