"Nossa cultura é a macumba, não a ópera. Somos um país sentimental, uma
nação sem gravata"
(Glauber Rocha)


sábado, 11 de setembro de 2010

MARX E A FUNÇÃO SOCIAL DO CRIME


“Um filósofo produz idéias, um poeta versos, um pastor sermões, um professor manuais etc. Um criminoso produz crimes.
Se considerarmos um pouco mais de perto a relação que existe entre este ramo da produção e o conjunto da sociedade, revelaremos muitos preconceitos.
O criminoso não produz apenas crimes, mas ainda o Direito Penal, o professor que dá cursos sobre Direito Penal e até o inevitável manual onde esse professor condensa o seu ensinamento sobre a verdade. Há, pois, aumento da riqueza nacional, sem levarmos em conta o prazer do autor. O criminoso produz ainda a organização da polícia e da Justiça penal, os agentes, juizes, carrascos, jurados, diversas profissões que constituem outras categorias da divisão social do trabalho, desenvolvendo as faculdades de espírito, criando novas necessidades e novas maneiras de satisfazê-las. Somente a tortura possibilitou as mais engenhosas invenções mecânicas e ocupa uma multidão de honestos trabalhadores na produção desses instrumentos.
O criminoso produz uma impressão, que pode ser moral ou trágica; desta forma ele auxilia o movimento dos sentimentos morais e estéticos do público. Além dos manuais de Direito Penal, do Código Penal e dos legisladores, ele produz arte, literatura, romances e mesmo tragédias. O criminoso traz uma diversão à monotonia da vida burguesa; defende-a do marasmo e faz nascer essa tensão inquieta, essa mobilidade do espírito sem a qual o estímulo da concorrência acabaria por embotar. O criminoso dá, pois, novo impulso às forças produtivas...”

Karl Marx (“apud” Henri Lefebvre. Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Forense, 1968, pp. 79 e 80).

SATANÁS, POR KALIL GIBRAN


SATANÁS

(Gibran Khalil Gibran)

O Padre Simão era conhecedor profundo dos assuntos espirituais e teológicos, versado nos segredos do pecado venial e mortal e nos mistérios do Inferno, Purgatório e Paraíso. Percorria as aldeias do Líbano do Norte, pregando penitência aos fiéis,
curando suas almas do mal e prevenindo-os contra as armadilhas do demônio, a quem padre Simão combatia dia e noite sem desanimar e sem descansar. Os camponeses veneravam padre Simão e gostavam de comprar suas preleções e preces com prata e ouro, e disputavam o privilégio de presenteá-lo com o melhor de suas colheitas.
Certa tarde de outono, padre Simão caminhava por um lugar isolado em direção a uma aldeia perdida entre aqueles montes e vales, quando ouviu gemidos dolorosos vindos da beira da estrada. Olhou e viu um homem desnudo, estendido sobre o pedregulho; o sangue jorrava-lhe de feridas profundas na cabeça e no peito, e ele implorava socorro: “Salva-me! Ajuda-me! Tem pena de mim! Estou morrendo.”
O padre parou, perplexo, considerou o homem e concluiu: “Deve ser algum
salteador, que atacou um viajante e foi repelido. Está agonizando. Se expirar em
minhas mãos, responsabilizar-me-ão pela sua morte.”
E reiniciou sua marcha. Mas o moribundo deteve-o de novo: “Não me abandones, não me abandones. Tu me conheces e eu te conheço. Vou morrer se não me socorreres.”
O padre empalideceu, e pensou: “Deve ser um dos loucos que vagueiam por estas campinas. O aspecto dos seus ferimentos me arrepia. Em que posso ajudá-lo? O médico das almas não cura os corpos.”
E andou mais alguns passos. Mas o ferido lançou um grito que comoveria até as pedras: “Aproxima-te de mim. Somos amigos há muito tempo. És o padre Simão, o bom pastor; e eu não sou um salteador nem um louco. Aproxima-te de mim para que te diga quem sou.”
O padre aproximou-se, inclinou-se sobre o moribundo e viu uma face estranha, na qual se misturavam a inteligência e a astúcia, a fealdade e a beleza, a perversidade e a doçura. Recuou e gritou: “Quem és tu? Nunca te vi em minha vida.”
O moribundo mexeu-se ligeiramente, fitou os olhos do padre com um sorriso significativo, e disse numa voz profunda e suave: “Eu sou Satanás.”
O padre soltou um grito terrível, que ecoou pelos recantos daquele vale, examinou novamente seu interlocutor, verificou sua semelhança com a figura dos demônios pintados na do Juízo Final que guarnecia a parede da igreja da aldeia,e bradou, trêmulo: “Deus me revelou tua face infernal para alimentar meu ódio por ti. Sê maldito até o fim dos tempos!”
O demônio respondeu com certa impaciência: “Não sabes o que dizes, e não calculas o crime que cometes contra ti mesmo. Eu fui e continuo a ser a causa de teu bem-estar e de tua felicidade. Menosprezas meus benefícios e negas meu mérito, enquanto vives à minha sombra? Não foi minha existência a justificação da profissão que escolheste, e meu nome, o lema de tua vida? Que outra profissão abraçarias, se o destino decretasse a minha morte e os ventos desvanecessem o meu nome?
“Há vinte e cinco anos, percorres estas aldeias para prevenir os homens contra minhas armadilhas, e eles compram tuas preleções com seu dinheiro e os frutos dos seus campos. Que outra coisa comprariam de ti amanhã, se soubessem que seu inimigo, o demônio, morreu e que estão livres dos seus malefícios?
“Não sabes, em tua ciência, que quando a causa desaparece, as consequências desaparecem também? Como aceitas, pois, que eu morra e que tu percas, assim, tua posição e o ganha-pão de tua família?”
O demônio calou-se. Os traços do seu rosto não exprimiam mais a súplica, mas, antes, a confiança. Depois, falou de novo:
“Ouve-me, ó impertinente ingênuo, e te mostrarei a verdade que liga meu destino ao teu. Na primeira hora da existência, o homem pôs-se de pé diante do sol, estendeu os braços e clamou: ‘Atrás das estrelas, há um Deus poderoso, que ama o bem.’ Depois, virou as costas ao sol e viu sua sombra alongada no chão, e gritou: ‘E nas profundezas da terra, há um demônio maldito, que gosta do mal.’ “E o homem voltou à sua gruta, murmurando: ‘Estou entre dois deuses terríveis: um é meu protetor; o outro, meu inimigo.’ E durante séculos, o homem sentiu-se vagamente dominado por duas forças: uma boa, que ele abençoava; outra má, que ele amaldiçoava.
“Depois, apareceram os sacerdotes e eis, meu irmão, a história de sua aparição: Havia, na primeira tribo que se formou sobre a terra, um homem chamado Laús, que era inteligente, mas preguiçoso. Destestava os trabalhos braçais de que se vivia naquela época, e muitas vezes tinha que dormir de estômago vazio.
“Numa noite de verão, quando os membros da tribo estavam reunidos em volta do chefe, a conversar descansadamente, um deles levantou-se, de repente,apontou para a lua e disse com medo: ‘Olhem para o deus da noite: sua cor empalideceu, ele está se transformando numa pedra preta.’ “Todos olharam a lua, e tremeram. Então, Laús, que tinha visto outros eclipses, levantou-se no meio da assembleia, ergueu os braços ao céu e, pondo em sua voz todo o fingimento de que era capaz, disse piedosamente: ‘Prosternaivos,meus irmãos, e orai; pois o deus das trevas está agredindo o deus incandescente da noite. Se o primeiro vencer, morreremos; se for derrotado,viveremos. Orai para que vença o deus da lua’.
“E Laús continuou a falar, até que a lua voltou ao seu esplendor natural. Os presentes ficaram maravilhados e manifestaram sua alegria com canções de danças. E o chefe da tribo disse a Laús: ‘Conseguiste, esta noite, o que nenhum mortal conseguiu antes de ti. E descobriste segredos do universo que nenhum de nós conhecia. Regozija-te, pois a partir de hoje serás o segundo homem da tribo, depois de mim. Eu sou o mais valente e o mais forte, e tu és o mais culto e o mais sábio. Serás, portanto, o intermediário entre os deuses e mim, revelando-me seus segredos e ensinando-me o que devo fazer para merecer sua aprovação e sua benevolência.’“Respondeu Laús: ‘Tudo o que os deuses me revelarem no meu sonho, eu te revelarei ao despertar. Serei o intercessor entre os deuses e ti.’ “O cacique regozijou-se e presenteou Laús com dois cavalos, sete bois, setenta cordeiros e setenta ovelhas. E disse-lhe: ‘Os homens da tribo construir-teão uma casa igual à minha e oferecer-te-ão, em cada colheita, parte dos frutos da terra. Mas, dize-me, quem é esse deus do mal, que se atreveria a agredir o deus resplandecente?’“Laús respondeu: ‘É o demônio, o maior inimigo do homem, a força que desvia a marcha do furacão para as nossas casas, que manda a seca às nossas plantações e as moléstias aos nossos rebanhos, que se alegra com nossa infelicidade e se entristece com nossos júbilos. Precisamos estudar seus humores e táticas para prevenir seus malefícios e frustrar seus ardis.’“O cacique apoiou a cabeça em seu cajado e sussurrou: ‘Sei agora o que ignorava: a humanidade saberá também o que sei e te honrará, Laús, porque nos revelaste os mistérios do nosso terrível inimigo e nos ensinaste a combatê-lo vitoriosamente.’ “E Laús voltou à sua tenda, eufórico com sua habilidade e imaginação. E o cacique e seus homens passaram uma noite povoada de pesadelos. “Assim apareceram os sacerdotes no mundo. E minha existência foi a causa de sua aparição. Laús foi o primeiro a fazer da luta contra mim a sua profissão. Mais tarde, a profissão prosperou e evoluiu até se tornar uma arte fina e sagrada, que abraçam somente os espíritos maduros e as almas nobres e os corações puros e as vastas imaginações.
“Em cada cidade que se erguia à face do sol, meu nome era o centro das organizações religiosas e culturais e artísticas e filosóficas. Eu construía os mosteiros e os ermitérios sobre o medo, e fundava os caberés e os bordéis sobre a luxúria e o gozo. Sou o pai e a mãe do pecado. Queres que o pecado morra,com minha morte?
“Curioso é que me esfalfei a mostrar-te uma verdade que conheces melhor do que eu, e que serve a teus interesses ainda mais do que aos meus. Agora, faze o que quiseres. Carrega-me em tuas costas para tua casa e medica meus ferimentos, ou deixa-me agonizar e morrer aqui!”
Enquanto o demônio discursava, o padre Simão se agitava e esfregava as mãos. Depois, disse numa voz encabulada e hesitante: “Sei agora o que ignorava há uma hora; perdoa, pois, minha ingenuidade: Sei que estás no mundo para tentar, e a tentação é a medida com que Deus determina o valor das almas.
“Sei agora que, se morreres, a tentação morrerá contigo, e assim desaparecerão as forças que obrigam o homem à prudência e o levam a rezar,jejuar e adorar. Deves viver, porque sem ti os homens deixarão de temer o inferno e mergulharão nos vícios. Tua vida é, portanto, necessária à salvação da Humanidade; e eu sacrificarei meu ódio por ti no altar do meu amor pela Humanidade.”
O demônio soltou uma gargalhada similar à explosão dos vulcões, e disse:“Que inteligência e que habilidade, ó reverendo padre! E que conhecimento sutil da teologia! Com tua perspicácia, criaste uma justificativa para a minha existência,
que eu próprio ignorava.”
Então, o padre Simão aproximou-se do demônio, carregou-o às costas e
prosseguiu no seu caminho.

Livro: Temporais
Autor: Gibran Khalil Gibran
Tradução e apresentação: Mansour Challita
Editora: Acigi

Ladrão gente boa revela a função social do crime


Essa semana defendi em sala de aula, ministrando direito penal IV, que o crime exerce uma relevante função social. Os alunos se olharam assustados, me levando a narrar o conto "Satanás" de Kalil Gibran, onde um padre encontra o próprio que o convence da sua necessidade. Bom, mais do que palavras de um intelectual, ouçamos o que tem a dizer um trabalhador do crime, ou seja, alguém que está na lida...

PARANÓIA ÚTIL!

Nem Marx, nem Lênin. Hegel


Por Francisco Viana

“Nenhum sonho pode ficar parado: isto não faz bem”. Ernst Bloch, O princípio esperança. A proximidade das eleições presidenciais sugere uma reflexão em torno do ambiente político brasileiro. Não uma reflexão voltada para discutir quem é o melhor candidato, mas uma reflexão orientada para um projeto político que mude a cor sombria dos nossos pesadelos – exclusão social, violência, desemprego, exploração, destruição do meio ambiente, por exemplo, para o colorido dos nossos sonhos. Na realidade, esse projeto já existe e vem sendo posto em prática pelo governo Lula que tem rompido com a barreira das impossibilidades e tornado a concretização dos sonhos possível. A candidata Dilma Rousseff corresponde, mais do que à continuidade, ao aprofundamento da concretização desses sonhos, por simbolizar o projeto da inclusão social e da estabilidade política. Vejamos as diferenças concretas, a partir da realidade concreta.

José Serra, que o marketing quer “vender” à sociedade como “Zé”, construiu um mundo sem fronts. O seu espírito de época é anacrônico porque é meramente discurso. Como alguém pode chamar Serra de “Zé”? Zé representa o horizonte mais distante a que conseguiu chegar o seu marketing político, tecido por artífices do medo que tentam fazer do passado de Dilma Rousseff – louvável sob todos os aspectos, a começar pelo enfrentamento da ditadura militar – um fator negativo, fonte do éter da alienação. Medo de quê? Frear o desenvolvimento? A supressão das liberdades? Acirramento da luta de classes? O Brasil, com Lula, ingressou num ciclo de prosperidade sustentável. Por que iria recuar? Além da prosperidade, vem confluindo das corredeiras da exclusão para o leito da inclusão social, com entendimento em lugar de confronto de classes. Lula esteve à frente desse processo. Dilma esteve ao seu lado e persiste. O sonho marxista dos anos 60-70 está sendo revisto, em todo o mundo. A via democrática tornou-se um valor. O socialismo libertário, pouco a pouco, entra no cotidiano das nações, por força inclusive da própria realidade. Há uma nova esperança, não abstrata, mas real. O Brasil é parte dessa nova esperança. E esta vem sendo conquistada pelo voto.

A ideia da prosperidade, como a ideia de liberdade, é da esquerda. Surge no Renascimento e se projeta pelos séculos seguintes, sempre iluminada pelo propósito de democratizar os frutos do progresso. Democratizar a participação coletiva na construção do mundo. O marco dos novos tempos datados do renascimento é a ruptura com a ideia da felicidade na vida celestial, trazendo o paraíso do céu para a terra. A felicidade é aqui, agora, é a partida para o futuro modelado pela essência do presente. Tudo isso aconteceu muito antes de Marx. O capitalismo, inclusive, foi resultado desse sonho quando a burguesia revolucionária revelou-se contra o espartilho do feudalismo. Se recuarmos no tempo, a história é mais antiga, bem mais antiga: data da mitológica ruptura de Prometeu, o criador dos homens, com o autoritário Zeus.

A ideia de felicidade ocupou papel central no Iluminismo, ou seja, no âmbito da filosofia que prepara ideologicamente a derrocada do Antigo Regime. A revolução nos Estados Unidos proclama, entre as verdades “por si mais evidentes”, o exercício de “direitos inalienáveis” em cujo âmbito entram “a vida, a liberdade e a busca da felicidade”, que nos EUA é o gozo tranquilo de uma confortável esfera privada. Em 1793, aparece a nova Declaração dos direitos do homem e do cidadão, que, no artigo 1, proclama: o fim da sociedade é a felicidade humana.
(bonheur) comum. O artigo 21 esclarece: “Os socorros públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos desafortunados (literalmente, infelizes, malhereaux), seja arranjando-lhes um trabalho, seja dando àqueles que não estão em condições de trabalhar os meios para viver”. É o que está fazendo o governo Lula. Procura a felicidade às grandes massas. Criou empregos, ampliou a oferta de vagas nas escolas, promoveu a paz social, o entendimento entre classes, semeou um novo ciclo de progresso, consolidou as liberdades públicas, deu forma a um ambiente de liberdade. Fez com que os brasileiros sentissem orgulho, de fato, com a preeminência do Brasil na comunidade internacional. Fatos, nada mais que fatos. E José Serra, esse o seu verdadeiro nome, a sua verdadeira identidade, o que tem feito?

Fazer política significa entender o seu tempo e transpor a realidade. Dilma representa a possibilidade efetiva de construir o concreto. O evento histórico da sua eleição representará não a condução de uma mulher à presidência da República – o que carece de significa histórico, na medida em que a política está acima de sexo e de raças – , mas a continuidade de um projeto político modernizador, em sentido amplo. E a eleição de Serra, o “Zé” do marketing, qual seria o seu significado histórico? Nada mais do que o anacronismo, o que foi superado pela história, isto é, a política sem povo, sem massas no processo. As pesquisas, com larga margem de vantagem à candidata do PT, demonstra que o brasileiro está pensando para frente, não mais se atém a pensamentos eminentemente imóveis. A filosofia que vai emergir das urnas, a julgar pelas pesquisas, será a filosofia do novo. Seu espaço de realização é aquele o cidadão, o citoyen – o ser “não egoísta ” da polis, para citar a feliz definição de Ernst Bloch – na vida social, não um governo de pretensos sábios, de uma pretensa elite que não sonha para frente, sonha para trás. Como sonhou com o regime militar pós 64, o Estado Novo, de 1937, e a proclamação de uma república sem povo, na transição do século XIX para o século XX. O novo, entenda-se, nasce da embricação do que a gente brasileira conquistou ao longo da história e tem optado por continuar construindo. Serra foi um representante dessa construção, mas distanciou-se do cidadão, do coletivo. Perdeu a visão da história. Por isso, é que o PSDB, com seu saber retórico, não tem como ser protagonista de um processo de mudança. Pode ser um ator coadjuvante, como vem sendo, mas nunca um ator principal.

O que o governo Lula fez – e Dilma Rousseff vai aprofundar – não foi de inspiração marxiana ou leninista, mas hegeliana. Superou o arcaico, mediou a realidade com a dialética hegeliana. O futuro do vir a ser tornou-se visível no presente, os arcaísmos ficaram para trás. E por arcaísmo entenda-se mais do que a limalha da ditadura militar. Entenda-se hoje personalidades como José Serra, Fernando Henrique Cardoso, e todo aquele que abraça o modelo discursivo de mudança, mas restringe-se apenas a mudanças idealizadas, contemplativas, sem paradigmas práticos. Não é preciso muito longe. Basta ler as reportagens da revista Lula sobre as eleições para entender, sem grande esforço, a ausência de limites do discurso do éter, o discurso das palavras sem ação. Dilma Rousseff é o contrário. Corresponde à simbologia real da sabedoria e da ação num mesmo movimento.

As eleições que se avizinham não corresponderão, a se confirmarem os resultados das pesquisas, a nenhum atentado contra a democracia. Pelo contrário, serão uma nova expressão da sua vitalidade no Brasil de hoje, como construção de cidadãos-arquitetos do progresso e da liberdade. As eleições serão como a coruja de Minerva que sobrevoa o crepúsculo quando as velhas formas de vida nada mais são do que meros registros na história. Quando tornam-se anacrônicas como o pensamento de José Serra, político, sem dúvida, da valiosa contribuição ao país, mas que não ousou alçar-se além dos limites da política distante das ruas, permanecendo-se refém da anti-história. Uma política condenada a existir apenas nos livros ou nos delírios dos que vivem no passado, cegos à visão da presença do futuro que está acontecendo aqui, agora, transformando as desesperanças e as falsas esperanças em esperanças objetivas, verdadeiras. A novidade desta eleição, pelo que indicam as pesquisas, é que estamos em harmonia com o que está surgindo de novo na história do mundo. De expectadores, nos tornamos protagonistas ativos dessa nova história.

____________________

Leitura recomendada:

BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

Francisco Viana é jornalista, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: viana@hermescomunicacao.com.br)

Fonte: Terra Magazine

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Com açucar com afeto! Minha música predileta...

Supremo Tribunal Federal muda entendimento sobre Nova Lei de Drogas


Extraído de: Defensoria Pública da União - 06 de Setembro de 2010

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na última quarta-feira (1º) que é inconstitucional o dispositivo da Nova Lei de Drogas que proíbe a conversão de pena de prisão para pena alternativa em condenações por tráfico. A decisão se deu após o julgamento de habeas corpus de um réu defendido pelo Defensor Público Federal de Categoria Especial João Alberto Simões Pires Franco.

Segundo a corte máxima do país, o parágrafo 4º do artigo e 33 e o artigo 44 da lei 11.343/06 vai contra o princípio da individualização da pena, consagrado pela Constituição. "O legislador foi além do que lhe permitia a carta da República", lembrou o Defensor Público em sua sustentação oral no STF. Sendo assim, cada condenação por tráfico deve ser avaliada pelo juiz de acordo com as particularidades do caso e a pena de restrição de direito (pena alternativa) pode ser aplicada.

Este entendimento pode ser usado como parâmetro para outros processos semelhantes. A defesa do habeas corpus se deu no caso de um réu flagrado com 13,4 gramas de cocaína e que foi condenado a um ano e oito meses de prisão. "Não parece razoável que se vede a conversão neste caso", disse o Defensor João Pires Franco. Com a decisão, o juiz de primeira instância pode decidir sobre a aplicação ou não de pena alternativa para o réu.

NOVAS SÚMULAS DO STJ EM MATÉRIA PENAL

Súmula 455 . A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo. Rel. Min. Felix Fischer, em 25/8/2010.

Súmula 444. É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em
curso para agravar a pena-base.

Súmula 443. O aumento na terceira fase de aplicação da pena no crime de roubo
circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo suficiente para a sua exasperação a mera indicação do número de majorantes.

Súmula 442. É inadmissível aplicar, no furto qualificado, pelo concurso de
agentes, a majorante do roubo.

Súmula 441. A falta grave não interrompe o prazo para obtenção de livramento
condicional.

Súmula 440. Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de
regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito.

Súmula 439. Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde
que em decisão motivada.

Súmula 438. É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da
pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética,independentemente da existência ou sorte do processo penal.

STJ RECONHECE CONTINUIDADE DELITIVA EM CRIMES CONTRA A VIDA

Morte de marido e testemunha em mesmo momento é crime continuado


A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a tese de crime continuado e determinou que o juízo das execuções reduza a pena e estabeleça o regime prisional adequado para a professora universitária Cristiane Dias Negri, condenada a 38 anos e seis meses de reclusão em regime fechado, por matar o ex-marido e uma testemunha do crime.

A defesa de Cristiane, que está presa na Penitenciária Feminina do Tatuapé, em São Paulo, recorreu ao STJ com pedido de redução de pena, sob a alegação de que os homicídios ocorreram na mesma ocasião, o que configuraria o crime continuado. A professora foi condenada pelo Tribunal do Júri da Comarca de São Bernardo do Campo, em outubro de 2001.

Seu pedido de revisão criminal foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que afastou a alegada continuidade delitiva. O Ministério Público Federal emitiu parecer favorável à tese da continuidade, sustentando que Cristiane foi denunciada e condenada por homicídios qualificados praticados com as mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução.

Segundo o relator do recurso, ministro Og Fernandes, os autos demonstram “à saciedade” a presença dos requisitos necessários para o reconhecimento da figura do crime continuado, já que os delitos subsequentes – crimes contra a vida das vítimas Amauri e Célia – foram desdobramentos do inicial – homicídio do ex-cônjuge da ora paciente –, para não deixar testemunhas do delito que havia planejado.

Para o relator, uma vez reconhecida a tese da continuidade delitiva, impõe-se o redimensionamento da pena, nos ditames do artigo 71, parágrafo único, do Código Penal. De ofício (independentemente de pedido do interessado), a Turma também afastou a vedação à progressão do regime prisional imposto à professora, uma vez que o dispositivo que proibia o benefício foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

“Pelo exposto, concedo a ordem para determinar ao juízo das execuções que, de um lado, proceda à nova dosimetria da pena, observando o reconhecimento do crime continuado; de outro lado, estabeleça o regime prisional adequado, afastando-se a vedação legal à progressão”, concluiu o relator. Seu voto foi acompanhado por unanimidade.

O caso

No dia 19 de maio de 2000, em São Bernardo do Campo (SP), Cristiane contratou um matador para executar seu ex-marido, Celso de Azevedo Barros. O homem que efetuou os disparos nunca foi identificado.

Segundo a denúncia do Ministério Público de São Paulo, Cristiane estava separada judicialmente de Celso e, por isso, havia determinado dias e horários de visitas dos filhos do casal. No dia do crime, Celso, que iria buscar os filhos, recebeu um telefonema da sua ex-mulher, que dizia estar a caminho de casa, com os filhos, quando o carro quebrou. Mentindo, pediu ao ex-marido que fosse ao local para prestar socorro. Ele não percebeu a cilada e foi ao encontro, mas antes convidou Amauri Vicente Zopazo e Célia Maria Silva para acompanhá-lo.

Chegando ao local, Celso não viu as crianças e logo perguntou por elas a Cristiane, que demonstrou surpresa ao ver que seu ex-marido estava acompanhado. O homem contratado pela professora saiu de um carro e disparou contra Celso. Só então percebeu que havia outras duas pessoas no carro da vítima. Foi quando falou para Cristiane que "não poderia haver testemunhas". O homem atirou contra Amauri e Célia. Amauri morreu por causa dos ferimentos, mas Célia sobreviveu e testemunhou no julgamento de Cristiane.

Em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=98883#

Professores canadenses explicam sistema bijuralista

Extraído de: Associação dos Magistrados Brasileiros - 08 de Setembro de 2010

Nove das dez províncias que compõem o Canadá utilizam o Commom Law direito de origem britânica, que tem como fundamento os costumes e os precedentes judiciais. A exceção é Quebec, que aplica o Civil Law, herdado da França e que prioriza o direito escrito por meio dos códigos. O chamado bijuralismo foi tema da palestra dos professores Lorne Sossin e Sujit Choudhry, da faculdade de Direito da Universidade de Toronto, na noite desta terça-feira (7), quando começaram as atividades do I Congresso Internacional da AMB.

Os professores abordaram o tema O Sistema Legal Canadense Commom Law e Civil Law e recorreram à história do país para explicar como e porque o Canadá tem dois sistemas jurídicos. Temos momentos diferentes no tempo, mas em cada um deles a necessidade do bijuralismo passou a ser imperativo dentro da necessidade de um sistema jurídico único, explicou Sossi.

Já o professor Lourne explicou que, nesse regime, os governos provinciais têm poderes amplos para legislar, inclusive sobre matérias como educação, direito de família e aspectos civis. As províncias tem liberdade nesse sentido. O governo federal não tem o poder de mudar unilateralmente nada sem o consentimento das províncias, explicou o especialista, destacando que em razão disso, os tribunais locais também ganham muita força.

Em alguns casos, no entanto, o conflito judicial pode chegar à Suprema Corte do Canadá. Por essa razão, esse tribunal tem que refletir de forma adequada a diversidade do sistema judicial daquele país. Três dos noves juízes que compõem o Supremo do Canadá originam-se de Quebec.

O Supremo não é apenas um tribunal que lida com assuntos federais ou legais. Essa corte tem uma exigência de que três dos novos juízes sejam de Quebec. Por que isso? Para garantir que três dos noves sejam educados no Direito Civil. O tribunal mais alto do país é também o mais alto para questões costumeiras, civis e de Direito público e privado, afirmou Lourne.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

MORENO E DURVINHA


Por Mariana Pimenta

Moreno e Durvinha foram cangaceiros do bando de Virgínio, cunhado de Lampião. Entraram para o cangaço na década de 30 e abandonaram as armas no início de 1941, quando se viram sozinhos no sertão. O cangaço acabara em 1940, com a morte de Corisco. Subiram o rio São Francisco até Augusto de Lima, onde mudaram de nomes e construíram uma família.

Durvinha

Meu nome de batismo é Durvalina Gomes de Sá. Eu nasci em 1915 no Arrasta-pé, que era a fazenda de meu pai e que, hoje, é um povoado da cidade de Paulo Afonso, na Bahia. Nessa fazenda tinha criação de gado, cabrito e cavalo. Nós não saíamos da fazenda não, tinha tudo lá, plantávamos feijão, algodão... A minha infância foi só trabalho. Meu pai não dava tempo para mim, não. Ele era muito bravo. Minha mãe, coitada, era boa demais.

Nunca levei um tapa de minha mãe, mas meu pai, de vez em quando, dava um couro na gente. Éramos dez irmãos, quatro mulheres e seis homens. Lá não tinha escola que desse para os meninos irem estudar e voltar para trabalhar. Todas eram muito longes e os meninos faziam falta na fazenda. Meu pai agarrou lá um tal de mestre e pôs uma casa separada para os meninos estudarem. O mestre começou até bem, caprichando, brincando, chamava as moças para assistir o recreio. Até que começou a bater na gente. Batia mesmo. Ele perguntava e quem não falasse a letra certa ele metia a palmatória, que se chamava “celibó”. Era redonda, pesada e tinha um prego amarelo na frente. No primeiro dia que fui à escola, o vi bater em minha irmã. Ele deu 12 bolos em Rosinha, e ela dizia:

“Ai, meu mestrinho, pelo amor de Deus”.

Nunca mais fui à escola. Pedi: “Meu papai, pelo amor de Deus, não me põe na escola não, me deixa crescer mais. Ele bateu tanto em Rosinha que eu fiquei com medo dele bater em mim”. Então ele decidiu que eu iria ajudá-lo no serviço. Aprendi o ABC de ouvir, e só isso que sei. Ajudava papai a cortar mandacaru e mucambeira para o gado no tempo de seca e tinha que dar aquela ração pro gadozinho de noite comer.

Eu fi cava só trabalhando. Quando era para ir a uma festa, era em tapa de casa. A tapa de casa era assim: fazia a casa, poisava as madeiras, punha umas tabocas e ali as moças marcavam a embarreação da casa. No dia em que as moças buscavam a água para por no barro para os homens embarrear a casa, tinha festa de noite e nós dançávamos valsa. Eu até tinha um irmão que gostava de tocar. O meu vestido quem fazia era mamãe, que era costureira. Avião, o primeiro que eu vi no mundo eu estava na casa de meu pai. Nós
estávamos no sítio e ouvimos aquela zoeira.
“O que é isso?”, perguntei,
e papai disse: “É o zepelim que vai avoando para pousar lá em Pernambuco”.
Acho que ele pousava no ar.

Tinha até uma cantiga:

“Santos Dumont foi quem inventou
Ninguém nunca fez balão assim
Vamos todos aqui brevemente
No colosso balão zepelim
Didi, dada
E vamos todos no vôo do jequiá
Didi, dada
E vamos todos no vôo do jequiá”.

Eu ouvia falar em Lampião num nordeste longe, quando deitava de noite no terreiro. Tinha uma tal de esteira de tabul que põe no terreiro em noite de lua clara, e a gente deitava lá para conversar, e meu pai contava história. O relâmpago relampeava lá longinho, naquela pontinha. “É Lampião”, meu pai falava, “que vem chegando perto. Olhe ele pondo a língua lá”. Era o relâmpago. Falava só de destruição dele, de bagunça que ele fazia. Eu nem ligava não.

Quando é um dia, nós estávamos lá em casa e chega aquela homenzaiada, montada a cavalo, cada cavalo bonito, e tomou conta do terreiro. Lampião era cego de um olho e tinha os cabelos tudo grande. Nós éramos umas mocinhas novas, tudo bonitinha. Eles entreteram ali. Montaram no cavalo e saíram cantando, bonito mesmo:

“Quem parte, parte chorando, quem fi ca, vida não tem. Adeus que eu já vou embora,
não amo mais a ninguém”.

No grupo tinha um irmão de Lampião, Ezequiel. Dos irmãos dele, só tinha esse lá. Os outros já tinham morrido nos combates. Despediram e foram embora. Eu não tinha 15 anos. Era novinha. Só tinha tido menstruação duas vezes. Quando é um dia, meu pai chega lá em casa e diz: “Durvinha, vem cá”. Ele me deu 20 contos de réis. Eu digo: “E esse dinheiro?”. Ele diz: “Esse dinheiro é aquele dos cabritos seus”. Eu tinha uns cabritos gordos, bonitos. Lá em casa nós só comíamos carne de cabrito. Meus irmãos matavam cabrito, retalhavam e vinham vender carne em uma cidade que chamava Jeremoabo, no estado da Bahia. Ele me deu os 20 contos de réis e disse:

“Esse dinheiro você guarda em segredo porque foram aqueles homens que passaram aqui. Eles comeram os seus cabritos e mandaram o dinheiro para você”.

Era um dinheirão. Em vez de ficar com raiva, eu fi quei foi muito alegre com aquilo. Fiquei com o
dinheiro. Eles acoitaram no sítio de meu pai, detrás da roça, uma lavoura grande de algodão. Eles fizeram um acampamento detrás da roça, na cerca, e lá ficaram. Tomaram amizade com meu pai e de vez em quando aparecia um lá em casa, que era o cunhado de Lampião, Virgínio. Ele ia montando uma mula bonita por dentro da caatinga até lá em casa. Ali ele não tinha perseguição nenhuma, ficava lá escondido. Quando é um
dia ele me convidou para sair. Eu fui embora com ele para outra fazenda perto. De lá ele ia para onde morava Maria Bonita. Eu nunca tinha visto essa Maria, mas ela morava perto do Arrasta-pé. Conheci ela mais Lampião, que nós ficávamos tudo junto.

Maria era muito bonita. Outros dizem que ela era feia, mas ela era muito bonita, divertida. Já Lampião era feio, coitado. O olho dele era meio escuro. Mas ele tinha uma prosa muito boa. Ele só agradava quem agradava ele. Eu fiquei muito tempo no mato com Virgínio. Eu era tão inocente, não sabia de nada, era uma bobinha. Depois nós atravessemos da Bahia para Pernambuco, mais Lampião e a turma toda, a pé. A gente só andava de cavalo quando ia mudar para outro estado. Mas quando tinha uma volante grande atrás de nós, era tudo a pé, para a polícia não pegar o rastro. Fiquei com ele muitos anos, andamos tudo quanto foi lugar na Paraíba, Pernambuco, Alagoas e outros estados de lá, a pé. Mas nunca fui na praia. Vi o mar agora, quando fui de avião para Bahia ver meus parentes. Vi o mar lá de cima do avião.

Tive duas filhas com Virgínio. Dei as duas e não tive notícia nenhuma. Diz que meu pai chegou a criar uma das
meninas, mas não sei se era a minha não. Não podia ter criança no bando, com medo de chorar e a polícia encontrar nós. Eu não sabia cozinhar, quer dizer, sabia assim, já ouviu falar em imbu? Lá tem uns pés de imbuzeiro, aqui não tem não. Tem umas batatas grandes. Arranca aquilo, tira o miolo. Mata um cabrito como daqui a uma légua, leva na cacunda e tira o couro pra bicha morrer. Enche a batata de carne, cava um buracão no chão, muita difi culdade para fazer a buquinagem. Enche aquilo de carne, põe aquela bubuca com carne dentro ali no buraco, com terra queimada, rebuliça de terra e põe fogo em cima, tampado. No outro dia ou de tarde, abre aquela carne cozida gostosa, junta toda a gente e come um pouquinho.

A mulher no cangaço só fazia boniteza. Passava ruge, naquela época não tinha batom. Penteava aqueles cabelos bonitos, cada cabelão. Ficava lá numa rede balangando. Quando a polícia vinha e atirava, ficava lá tudo no chão. A gente deixava tudo. Eu costurava roupas, mas não sabia não. Aprendi por curiosidade. Meu
marido, Virgínio, ele era costureiro. Ele punha aquelas flores no bornal, moedas de ouro no chapéu, era ele quem pregava. Ele era todo enfeitado, era um homem muito bonito. Mas não era ciumento não. Ele era muito bom para mim. Fiquei triste quando ele morreu, mas lá ninguém sente tristeza não. Não sente tristeza porque o medo não deixa.

Quando ele morreu, fiquei andando mais outra amiga minha no bando, sem solução. Quando Moreno chamou para nós ir embora, ele foi e perguntou se nós queríamos ir embora, que ele mandava nós, sentava nós para nós viver. Eu falei que não queria não. Ele então perguntou se eu queria ficar mais ele, fiquei e estou até hoje com ele.

De repente nós se viu sozinho no cangaço. A gente só ouvia falar que tinha matado Lampião. Nós andávamos e onde nós tínhamos assistido fogo, achávamos pé, ossada... Nós saímos do cangaço na festa de Tacaratu. Nós caminhamos três meses à noite escondidos, a pé, até chegar em Montes Claros. A vida foi doída.
Nunca dormimos em casa, dormíamos debaixo de uns paus. Tinha um caldeirãozinho que a gente cozinhava, mas só comia peixe e farinha na beira do rio São Francisco, até nós chegarmos na lapa de Senhor Bom Jesus e, depois, em Montes Claros. Nós viemos subindo o rio São Francisco, Cabrobró, Orocó, Ibó. Passemos onde houve a guerra de Canudos. Cada buraco numas paredonas... Passava lá e até arrupiava. É chão, é terra até chegar aqui em Minas Gerais.

Nós viemos para Augusto de Lima só sofrer. Era ele cortando lenha e eu carregando no braço para empilhar até dar 1,20m de altura. Fazia assim para nós vender. Vendia para fazer carvão. Quando era dia de sábado, nós íamos vender, não dava para nada. Nós morávamos em uma terra que chamavam de indigente, que ninguém queria mais. Tinha muito pequizeiro lá. Os pequís caiam nas covas dos defuntos, eles não comiam e nós apanhávamos para nós comer, o pequi das covas dos defuntos.

Lá em Augusto de Lima tive mais cinco filhos. Fiquei dez anos lá sem ter filho até que nasceu Murilo. Minha família é pequena, seis filhos e 14 netos. Gosto demais de minha família toda. Eu tenho uma irmã viva, Ilda, e dois irmãos caçulinhas também são vivos. Coitados, foram os que mais sofreram. A polícia, quando foi em minha casa, tirou o chinelo deles para eles andarem descalços na fuga. Hoje eles moram no Rio de Janeiro. Covardia da polícia. Família de cangaceiro lá não ficou, não. Lídia e Maria Bonita eram vizinhas e a família delas a polícia arrasou. A polícia acabou com tudo. O que não acabou, escorraçou. Eu nunca pensei que ser cangaceiro tivesse alguma importância na história. Eu só pensava na polícia chegar e dar um tiro. Nós dormia era arriado, nos cantos, sentados. Não tinha casa para nós não.

Moreno

“Meus senhores e senhoras, a todos eu peço licença. Vou contar uma história arrancada do meu coração, vou falar um pouquinho do bando de Lampião”.

Meu pai chamava Manuel Inácio da Silva e eu nasci em Pernambuco. Fui batizado em Mata Grande, estado de Alagoas, com o nome de Antônio Inácio da Silva. Me criei até os 16 anos e sete meses no estado do Ceará. Meu pai, quando eu nasci, mudou de Pernambuco. Meu pai fez um crime em Pernambuco. Ele nunca
falou não, mas minha mãe falava que ele fez um crime em Pernambuco e mudou para o Ceará.

Eu era novinho. Criei lá. Tive escola, mas não aprendi nada. Eu aprendi um pouco já depois de homem feito, que eu cheguei aqui em Minas. Meu pai trabalhava na lavoura e minha mãe era só em casa, tomando conta da casa e dos dez fi lhos, cinco homens e cinco mulheres. Todo ano eu ia trabalhar na Paraíba. Com 12 anos eu já saía para apanhar algodão lá. Em 1927, eu estava com 16 anos e sete meses e fui para Juazeiro, na Bahia, para ver se eu podia ser polícia, que eu tinha vontade de ser um policial. Não tinha idade nem tamanho, de forma que não me aceitaram. Eu fui para a Paraíba. Cheguei lá e uma mulher me fez um falso com uma moça, bati na mulher e matei o marido dela. Tinha 16 anos e sete meses. Aí eu fui para Pernambuco. Fiquei trabalhando nas usinas, escondendo de ser preso.

Quando foi no ano de 1930, quando mataram João Pessoa, eu estava em Recife e um comandante de Sirinhaém falou: “Olha, eu vou te colocar na polícia”. Quando ele falou, pensei: “Graças a Deus vou ser um policial”. Ele foi e me deu um documento, eu não tinha registro, não tinha nada, e ele me deu uma carta para eu apresentar no quartel de Recife. Na época, eu trabalhava em usina e tinha conhecimento com o coronel Antônio Fontes e pedi a ele uma carta de representação. Ele me deu e fui para o quartel. Foram quase 15 dias junto com os policiais, esperando o decreto abrir. O dia que o decreto abriu tinha homem demais a escolha, só homão forte; eu, como diz, era aquele garrancho. Não quiseram eu não.

Eu trabalhava de barbeiro e fui trabalhar em uma barbearia em Santana do Ipanema, em Pernambuco. Lá, a barbearia só dava movimento em dia de domingo e dia santo, quando vinha gente da roça. Falei com o dono da barbearia que ia deixar a barbearia e ia trabalhar na roça, que dava mais para mim. Ele me propôs de trabalhar nos dias de domingo e dias santos na barbearia e o resto na roça. Assim eu fi quei. Até que vai na roça um homem e me chama:
“Seu Antônio, estou com medo dos cangaceiros vim aqui. Se o senhor quiser tomar conta de minha casa, o senhor fica trabalhando seguido, em vez de trabalhar um dia para um e um dia para outro”.
Eu peguei o serviço e, com um mês e pouco, os cangaceiros chegaram. Encheu o terreno de cangaceiros.
“De quem é essa casa aí?”, perguntaram.
E eu disse: “De Seu Antonino”.
Eles me deram uma carta e mandaram entregar a Seu Antonino. Quando ele veio, entreguei a carta a ele, que me perguntou:
“Seu Antônio, o que eu posso fazer com esses homens? Eles me pedem 200 mil-réis e eu não sei o que eu vou fazer”.
E eu disse a ele: “Seu Antonino, eu não dou conselho ao senhor para dar nem para não dar, mas se fosse eu, eu dava, porque por 200 mil-réis pode salvar a criação”.

Ele concordou, foi embora e depois de três dias voltou com uma carta com o dinheiro e me deu. Passaram-se mais de um mês e os cangaceiros chegaram. Entreguei a carta para eles.
“Olhe, fale com seu senhor que se vier qualquer cangaceiro aqui, ele avise que foi Virgínio, cunhado de Lampião que esteve aqui e nenhum cangaceiro vai fazer nada com o seu senhor”.
E me convidaram para ir com eles. Eu com vontade de ir porque tinha vontade de ser polícia e, quando
vi o pessoal armado, pensei: “Se ele me chamar eu vou”. Mas fi z que não queria ir. Por fi m, disse: “Não posso ir porque eu não entreguei a fazenda do homem. Entregando, eu vou, mas se não entregar, não posso não”.
E Virgínio respondeu: “Então você entrega e breve nós vêm te buscar”.

Mais uns dois meses se passaram e eles vieram. Era por volta de 1935. Eu fui embora com eles e, com uns três dias, Virgínio chegou com um homem e disse:
“Aqui é um presente que eu trouxe para você”.
Eu pensei: “Se eu não matar esse homem, eles vão me matar”.
Eu fui e matei o homem. Matei o homem e eles tomaram conhecimento comigo.

Logo, com uns quatro ou cinco dias, teve um tiroteio e eu assisti e não fui esmorecido. Eles viram, tomaram aquele conhecimento comigo e aquela confiança. Foi Luís Pedro que botou o apelido em mim de Moreno.
Ele disse: “Olha, vocês, cangaceirada, a partir de hoje, é para chamar esse moço aqui de Moreno”.

Por Moreno eu fiquei. Eu era homem de confiança deles até o dia que Virgínio, cunhado de Lampião, morreu. Eu fiz o enterro dele. Virgínio morreu em um tiroteio, em uma emboscada. Antes dele morreu Jacaré e eu fiz o enterro dele. Morreu Gato e eu fiz o enterro dele. Gato saiu baleado em Piranhas, com arma surda que não dava explosão, mas eu vi. A bala batia no chão e levantava poeira. Eu atirei na cabeça de quem atirou. Eu vi a arma saindo, não sei se acertei, mas eu atirei. Tiramos Gato que estava baleado e com sete dias ele morreu. Daí pra cá deu muito tiroteio, Nossa Senhora, eu assisti muito. Todos esses morreram e a polícia não ficou sabendo. Finado Virgínio morreu sete meses antes de Lampião, mas ninguém ficou sabendo porque eu fiz o enterro dele.

Agora, em junho de 2006, quando eu fui ao Ceará, eu tive notícia de que acharam a sepultura dele. Nós cavemos bem raso, porque não tinha ferramenta, foi cavador de pau e a terra é muito dura. Quando ele caiu, Durvinha ia à frente com dez homens, ou onze, e eu mais ele sozinhos atrás. Mas ia tudo perto uns dos outros. Eles passaram do córrego e não houve tiro, quando nós dois passamos, já atiraram, plá-plá. Nós pulamos dos cavalos no chão e atiramos. Ficaram os companheiros atirando por detrás de nós, eu no meio mais ele e os embosqueiros dentro do córrego. Tem hora que eu penso que essa bala que pegou fi nado Virgínio pode ter sido de um companheiro. Mas eu não sei. Eu saí atirando de ré e falei: “Vamos tirar Virgínio, que ele está morto. Faz uma linha de fogo, avança e vamos atirar”.
Houve muito tiro. Os embosqueiros correram. Eu desarreiei Virgínio, dei o bornal para um e as armas para outro.

“Agora vocês cessem fogo, põe ele na cacunda e sai com ele até quando estiverem cansados. Eu vou fi car aqui. Se vocês ouvirem tiroteio, correm com ele que é para a polícia não tomar e cortar o pescoço dele”.

Para a sepultura de Virgínio eu cortei muito mandacaru, xiquexique e tampemo, porque ele foi enterrado raso. Enterramos e saímos. Eu fiquei dominando essa homanhada dele e duas mulheres, Durvinha, que ficou viúva
com a morte de Virgínio, e uma outra viúva que tinha no grupe. Mas não podia ficar mulher sem homem no grupe. Falei com a moça que ia mandar ela embora mais Durvinha. No dia que eu fui mandar as duas embora, eu falei com Durvinha:
“Se você quiser fi car comigo, não quiser ir embora, eu te aceito”. Ela então ficou.

Uma parte dos cangaceiros saltou o rio para o outro lado, outros fugiram, outros foram mortos e outros se entregaram. Certo que eu fiquei e quando deu meio de janeiro de 1940, eu andava sozinho mais ela e um cangaceiro. A solução é abandonar as armas Eu tinha medo, mas como se diz, em riba de medo, coragem por quê ? Se fosse me entregar, ia preso e podia ser morto, e eu tinha muito medo de me matarem. Em novembro de 1940, ela ganhou neném, no estado de Alagoas. Antes de um mês de nascido, houve um tiroteio. Ela estava lavando roupa no lajedo. Deu uma chuvinha e ela foi lavar a roupa do menino, Inacinho, filho meu que hoje é Segundo Tenente no Rio de Janeiro. Nesse dia estava só eu mais ela. Cisso não estava com nós. Eu sei que estava ela em riba do lajedo, quando eu vi a polícia e disse:

“Pegue o menino e vai saindo que eu vou atirar que a polícia vem lá. Eu vou atirar para descontrolar e vai saindo”.

Ela saiu e eu atirei, plá-plá. Eu fui me retirando também e atirando. Quando nós nos encontramos, falei: “Vamos dar o menino”.
Quando demos o menino, eu resolvi que ia ao estado do Ceará dar a benção a meu pai. Saí de Alagoas, cortei Alagoas, Pernambuco, peguei o estado do Ceará. Dei a benção a ele de madrugada.
Ele gritou: “Quem é que está falando na porta?”
Eu digo: “É Antônio, pai”.
Ele me abraçou, despedi e tornei a sair na mesma noite, não fi quei lá não. O delegado soube que eu tinha chegado lá e mandou a polícia para lá, para me matar na casa de meu pai, no terreiro. Mas eu não fui mais lá. Encontrei um colega de escola que me contou que um soldado foi sair por um lago e outro soldado atirou
nele. Ele morreu na porta de meu pai, dias depois que fui lá.

Eu tornei a voltar para Alagoas, andei por todo ponto e não tinha cangaceiro mais nenhum. Nem rastro não achava. O padre para quem entregamos o menino mandou carta pedindo para ir embora. Meu pai também pediu para ir embora, mas eu não podia porque tinha esse cangaceiro, não podia deixar Cisso sozinho no mato. Conversei com ele e ele disse: “Vou ver se encontro meu povo. Vou conversar com eles e te dou resposta”.
Ele saiu três dias. Quando chegou, falou: “Olhe Moreno, vou embora”.
Eu digo: “Então, se você vai, você não viaja para o lado que o sol chega não. Eu conheço a beira do oceano em vários estados e não tem lugar de você seguir, só topa água. Você viaje para o lado que o sol esconde, que tem lugar de você desaparecer”.

Então ele foi embora. Ficou eu sozinho mais ela. Ainda rodei uns três meses mais ela. Durante esse tempo todo que eu fui cangaceiro, eu nunca dormi um sono em uma casa, foi só no mato, feito bicho bruto. Um dia, nós íamos andando, começando a turvar, eu sozinho mais ela, eu na frente e ela atrás.
Ela diz assim: “Moreno, deixa eu passar na frente que eu estou me arrupiando,
estou com medo”.
Quando ela passou para frente uma cobra pegou ela. Fui com ela para a fazenda de um padre, mandei pedir remédio a ele, um contra-veneno que ela estava ofendida de cobra. Ele mandou o contra-veneno e eu dei a ela. Quando ela melhorou, eu falei para ela: “Cisso foi embora, agora nós vamos arriscar ir embora. O padre está só me pedindo para ir embora. Eu vou escrever para ele que atendo o pedido dele, mas que eu estou precisando de roupa, chapéu, calçado, porque nós não podemos sair nos trajes de cangaceiros”.
Ele mandou tudo e, no dia 2 de fevereiro de 1941, festa de Nossa Senhora da Saúde em Tacaratu, estado de Pernambuco, eu abandonei as armas. Partimos, viajemos, viajemos até que cheguemos aqui em Minas Gerais.

Quando eu cheguei aqui, fui trabalhar de machado, cortar lenha para a Central (Estrada de Ferro Central do Brasil). Cortei lenha muito tempo. Depois fui plantando roça, criando porco e fui trabalhando na lavoura muitos anos. Depois plantava mandioca. Fiz farinha muitos anos, vendendo na cidade. Não precisava entrar farinha de fora não, que eu servia todo o comércio de farinha em Augusto de Lima. Sou como filho de lá. Muito conhecido e conheço todo o mundo. Em Augusto de Lima me conhecem como Pernambuco. Já em Corinto é Zé Perna, de Zé Pernambuco. Morei uns 25 anos em Corinto, que é umas quatro ou cinco léguas de Augusto de Lima. Tem poucos anos que estou em Belo Horizonte. Eu mexia com comércio lá, mexia com carvão, com carvoeiro. Eu mexi com carvoeiro dez anos, arrendando mato e fazendo carvão. Conforme, ia atrás de burro, ia atrás de boi. Lá eu tinha meus trens tudo, não passava falta de nada. Tinha casa, até mais de uma casa. Hoje não tenho casa para morar, moro na casa dos filhos. É certo que lá eu passava muito bem. Deus me ajudou.

Passaram-se anos e ano, eu falei com ela:
“Olha, nós temos esse filho em Pernambuco, os irmãos não sabem não. Vamos falar com Murilo, que é o filho mais velho e pedir segredo a ele”.
Eu e ela tivemos mais cinco filhos em Minas Gerais, duas mulheres e três homens. Passaram-se mais uns três
anos e pensei: “Pode nós morrer primeiro, pode Murilo morrer e os outros irmãos não sabem que têm esse irmão”. Falamos para mais dois filhos. Neli foi um deles e resolveu encontrar Inacinho. Quando encontrei meu filho, virei e falei para ele:

“Dentro de meu coração nasceu um pé de flor
Por falta de pingo d’água toda a folhinha murchou
Mas veio o sereno que Jesus Cristo mandou
E no dia 5 de novembro de 2005, meu querido filho Inacinho,
Que ficou em Pernambuco, hoje em Belo Horizonte chegou”.

Eu não sou repentista, mas tenho assim, um ar de repentista, porque:

“Sua senhora, eu não sou cantor, nem canto de profissão,
Mas tenho você guardada dentro do meu coração”.
“Eu não sou poeta, nem sou repentista, nem sou compositor
Mas faço algumas cantorias para mostrar quem eu sou”.

Eu também formo música. Eu cantei, sem ser cantor, lá em Fortaleza.

“Como em folha verde, nas quebradas do sertão,
quem anda na mata virgem, na sombra da solidão,
procurando sua sorte naquelas matas virgens, onde anda Lampião.
Procura a sua sorte, mas lá ainda não achou
Achou o imbuzeiro, no estado de Sergipe
Onde nasceu Expedita, filha de Maria Déia, esposa de Lampião”.

Foto: Leonardo Lara
Fonte: www.escritoriodehistorias.com.br

Morre Moreno, um dos últimos cangaceiros do bando de Lampião



Um dos últimos cangaceiros do bando de Lampião e Maria Bonita, José Antônio Souto, 100 anos, morreu na tarde desta segunda-feira em Belo Horizonte, onde morava com a família.

Moreno, como era conhecido no cangaço, entrou para o bando a convite do cangaceiro Virgulino, um dos integrantes do grupo, depois de ser barbeiro, caseiro e três vezes rejeitado pela polícia. O corpo de Moreno foi enterrado na manhã desta terça-feira no cemitério da Saudade, na capital mineira.

Ele vivia em Minas Gerais há 70 anos e segundo familiares veio para o Estado procurar tranqüilidade para viver com a mulher, Jovina Maria da Conceição, conhecida com Durvinha. Em 2008, o cangaceiro contou para o Terra que havia deixado o cangaço após os pais, amigos e um padre pedirem para eles abandonarem a vida cheia de riscos. Além disso, segundo a família, Durvinha tinha medo de ser degolada.

Segundo Nely Maria da Conceição, 60 anos, filha do casal, o pai já pedia para morrer há mais de dois anos, sempre chamando pela mãe. "Depois da morte de mamãe em 2008 meu pai entrou em depressão e sempre falava assim 'Mãezinha vem em me buscar. Já vi tudo que tinha pra ver. Quero encontrar Durvinh' ele estava sofrendo muito" disse.

Nely ainda conta que o fato de tanto Moreno quanto Durvinha serem enterrados em túmulos era considerado uma benção pelo pai. "Ele nos contava que no cangaço decapitavam os cangaceiros, mostravam a cabeça para o público e deixavam os corpos perdidos. Para meu pai, ser enterrado em um cemitério era uma coisa muito boa, uma benção. Por isso resolvemos fazer o que ele pediu, soltar foguetes no momento do sepultamento" afirmou.

A família ficou sabendo a verdadeira história do casal apenas em 2005, depois que Moreno, com problemas de saúde, revelou ter matado muitas pessoas e que abandonara um filho. Noeli da Conceição, uma das filhas do casal, também conversou com o Terra em 2008 e disse que chorou muito depois que descobriu o passado dos pais. "Eu estudei tudo aquilo que era o cangaço, sabia das atrocidades que eram cometidas, e meu pai me contou que fazia parte deles. Fiquei chocada. Fui para o banheiro, chorei muito e liguei para o meu namorado para contar a descoberta", contou.

A partir desse ponto, Noeli encontrou o primeiro filho do casal, Inácio Carvalho de Oliveira, que hoje vive no Rio Janeiro como policial aposentado. Ele também esteve no enterro. O casal de ex-cangaceiros também recebeu homenagem em um livro "Morenos e Durvinha, amor e fuga no cangaço" escrito por João de Souza Lima.