"Nossa cultura é a macumba, não a ópera. Somos um país sentimental, uma
nação sem gravata"
(Glauber Rocha)


sábado, 11 de setembro de 2010

Nem Marx, nem Lênin. Hegel


Por Francisco Viana

“Nenhum sonho pode ficar parado: isto não faz bem”. Ernst Bloch, O princípio esperança. A proximidade das eleições presidenciais sugere uma reflexão em torno do ambiente político brasileiro. Não uma reflexão voltada para discutir quem é o melhor candidato, mas uma reflexão orientada para um projeto político que mude a cor sombria dos nossos pesadelos – exclusão social, violência, desemprego, exploração, destruição do meio ambiente, por exemplo, para o colorido dos nossos sonhos. Na realidade, esse projeto já existe e vem sendo posto em prática pelo governo Lula que tem rompido com a barreira das impossibilidades e tornado a concretização dos sonhos possível. A candidata Dilma Rousseff corresponde, mais do que à continuidade, ao aprofundamento da concretização desses sonhos, por simbolizar o projeto da inclusão social e da estabilidade política. Vejamos as diferenças concretas, a partir da realidade concreta.

José Serra, que o marketing quer “vender” à sociedade como “Zé”, construiu um mundo sem fronts. O seu espírito de época é anacrônico porque é meramente discurso. Como alguém pode chamar Serra de “Zé”? Zé representa o horizonte mais distante a que conseguiu chegar o seu marketing político, tecido por artífices do medo que tentam fazer do passado de Dilma Rousseff – louvável sob todos os aspectos, a começar pelo enfrentamento da ditadura militar – um fator negativo, fonte do éter da alienação. Medo de quê? Frear o desenvolvimento? A supressão das liberdades? Acirramento da luta de classes? O Brasil, com Lula, ingressou num ciclo de prosperidade sustentável. Por que iria recuar? Além da prosperidade, vem confluindo das corredeiras da exclusão para o leito da inclusão social, com entendimento em lugar de confronto de classes. Lula esteve à frente desse processo. Dilma esteve ao seu lado e persiste. O sonho marxista dos anos 60-70 está sendo revisto, em todo o mundo. A via democrática tornou-se um valor. O socialismo libertário, pouco a pouco, entra no cotidiano das nações, por força inclusive da própria realidade. Há uma nova esperança, não abstrata, mas real. O Brasil é parte dessa nova esperança. E esta vem sendo conquistada pelo voto.

A ideia da prosperidade, como a ideia de liberdade, é da esquerda. Surge no Renascimento e se projeta pelos séculos seguintes, sempre iluminada pelo propósito de democratizar os frutos do progresso. Democratizar a participação coletiva na construção do mundo. O marco dos novos tempos datados do renascimento é a ruptura com a ideia da felicidade na vida celestial, trazendo o paraíso do céu para a terra. A felicidade é aqui, agora, é a partida para o futuro modelado pela essência do presente. Tudo isso aconteceu muito antes de Marx. O capitalismo, inclusive, foi resultado desse sonho quando a burguesia revolucionária revelou-se contra o espartilho do feudalismo. Se recuarmos no tempo, a história é mais antiga, bem mais antiga: data da mitológica ruptura de Prometeu, o criador dos homens, com o autoritário Zeus.

A ideia de felicidade ocupou papel central no Iluminismo, ou seja, no âmbito da filosofia que prepara ideologicamente a derrocada do Antigo Regime. A revolução nos Estados Unidos proclama, entre as verdades “por si mais evidentes”, o exercício de “direitos inalienáveis” em cujo âmbito entram “a vida, a liberdade e a busca da felicidade”, que nos EUA é o gozo tranquilo de uma confortável esfera privada. Em 1793, aparece a nova Declaração dos direitos do homem e do cidadão, que, no artigo 1, proclama: o fim da sociedade é a felicidade humana.
(bonheur) comum. O artigo 21 esclarece: “Os socorros públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos desafortunados (literalmente, infelizes, malhereaux), seja arranjando-lhes um trabalho, seja dando àqueles que não estão em condições de trabalhar os meios para viver”. É o que está fazendo o governo Lula. Procura a felicidade às grandes massas. Criou empregos, ampliou a oferta de vagas nas escolas, promoveu a paz social, o entendimento entre classes, semeou um novo ciclo de progresso, consolidou as liberdades públicas, deu forma a um ambiente de liberdade. Fez com que os brasileiros sentissem orgulho, de fato, com a preeminência do Brasil na comunidade internacional. Fatos, nada mais que fatos. E José Serra, esse o seu verdadeiro nome, a sua verdadeira identidade, o que tem feito?

Fazer política significa entender o seu tempo e transpor a realidade. Dilma representa a possibilidade efetiva de construir o concreto. O evento histórico da sua eleição representará não a condução de uma mulher à presidência da República – o que carece de significa histórico, na medida em que a política está acima de sexo e de raças – , mas a continuidade de um projeto político modernizador, em sentido amplo. E a eleição de Serra, o “Zé” do marketing, qual seria o seu significado histórico? Nada mais do que o anacronismo, o que foi superado pela história, isto é, a política sem povo, sem massas no processo. As pesquisas, com larga margem de vantagem à candidata do PT, demonstra que o brasileiro está pensando para frente, não mais se atém a pensamentos eminentemente imóveis. A filosofia que vai emergir das urnas, a julgar pelas pesquisas, será a filosofia do novo. Seu espaço de realização é aquele o cidadão, o citoyen – o ser “não egoísta ” da polis, para citar a feliz definição de Ernst Bloch – na vida social, não um governo de pretensos sábios, de uma pretensa elite que não sonha para frente, sonha para trás. Como sonhou com o regime militar pós 64, o Estado Novo, de 1937, e a proclamação de uma república sem povo, na transição do século XIX para o século XX. O novo, entenda-se, nasce da embricação do que a gente brasileira conquistou ao longo da história e tem optado por continuar construindo. Serra foi um representante dessa construção, mas distanciou-se do cidadão, do coletivo. Perdeu a visão da história. Por isso, é que o PSDB, com seu saber retórico, não tem como ser protagonista de um processo de mudança. Pode ser um ator coadjuvante, como vem sendo, mas nunca um ator principal.

O que o governo Lula fez – e Dilma Rousseff vai aprofundar – não foi de inspiração marxiana ou leninista, mas hegeliana. Superou o arcaico, mediou a realidade com a dialética hegeliana. O futuro do vir a ser tornou-se visível no presente, os arcaísmos ficaram para trás. E por arcaísmo entenda-se mais do que a limalha da ditadura militar. Entenda-se hoje personalidades como José Serra, Fernando Henrique Cardoso, e todo aquele que abraça o modelo discursivo de mudança, mas restringe-se apenas a mudanças idealizadas, contemplativas, sem paradigmas práticos. Não é preciso muito longe. Basta ler as reportagens da revista Lula sobre as eleições para entender, sem grande esforço, a ausência de limites do discurso do éter, o discurso das palavras sem ação. Dilma Rousseff é o contrário. Corresponde à simbologia real da sabedoria e da ação num mesmo movimento.

As eleições que se avizinham não corresponderão, a se confirmarem os resultados das pesquisas, a nenhum atentado contra a democracia. Pelo contrário, serão uma nova expressão da sua vitalidade no Brasil de hoje, como construção de cidadãos-arquitetos do progresso e da liberdade. As eleições serão como a coruja de Minerva que sobrevoa o crepúsculo quando as velhas formas de vida nada mais são do que meros registros na história. Quando tornam-se anacrônicas como o pensamento de José Serra, político, sem dúvida, da valiosa contribuição ao país, mas que não ousou alçar-se além dos limites da política distante das ruas, permanecendo-se refém da anti-história. Uma política condenada a existir apenas nos livros ou nos delírios dos que vivem no passado, cegos à visão da presença do futuro que está acontecendo aqui, agora, transformando as desesperanças e as falsas esperanças em esperanças objetivas, verdadeiras. A novidade desta eleição, pelo que indicam as pesquisas, é que estamos em harmonia com o que está surgindo de novo na história do mundo. De expectadores, nos tornamos protagonistas ativos dessa nova história.

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Leitura recomendada:

BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

Francisco Viana é jornalista, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: viana@hermescomunicacao.com.br)

Fonte: Terra Magazine

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