"Nossa cultura é a macumba, não a ópera. Somos um país sentimental, uma
nação sem gravata"
(Glauber Rocha)


domingo, 28 de novembro de 2010

Brizola versus Hobbes, ou do medo na cidade do Rio de Janeiro



Nas atuais circunstâncias, resolvi republicar aqui, no Justiça ao Avesso, um artigo que publiquei em 2004, sobre a situação da segurança pública no Rio de Janeiro. Na época, o ex-governador e criminólogo Nilo Batista me agraciou com um e-mail, onde se revelou emocionado e agraciado com o escrito. Guardo-o, até hoje, numa pasta e ao lado do coração. Ei-lo:

Artigo do professor Matheus Felipe de Castro, publicado na Revista Espaço Acadêmico, n. 36, de maio de 2004

“Nenhuma arte, nenhuma ciência está exposta a tão fundo grau de desprezo como quando qualquer um pode julgar dominá-la”. Quando G.W.F. Hegel pronunciou esta sentença, em seus “Princípios da Filosofia do Direito”, na cidade de Berlim, em 25 de junho de 1820, nem de longe poderia prever a relação ambivalente de amor e ódio que aconteceria, neste início de século, no país onde o surrealismo é normal, entre o povo e os aparelhos da repressão estatal. Refiro-me, é claro, ao Brasil, onde todos se arrogaram à cátedra de professores eméritos de direito penal, criminologia ou segurança pública. Todos os dias, pelas teletelas, assistimos a um constante desfilar de novas teorias criminológicas, todas elas proprietárias da verdade fundamental para conter a violência em nosso país, que haveria tomado proporções dantescas. O país estaria nas mãos do “narcotráfico” e os poderes constituídos, reféns dos traficantes!

A política, que desde a Grécia de Platão e Aristóteles era considerada o locus natural das transformações sociais, visto que o homem, na sentença do estagirita seria um “politikow zoon” (um animal político), somente alçando o caráter de ser social na vida da polis, foi mediocrizada na modernidade pelo pensamento liberal. O homem contemporâneo possui aversão à política, prima pela liberdade abstrata, pelo individualismo, pelos valores do capital e possui asco à vida pública.

Por outro lado, o direito penal foi se cristalizando como instrumento simbólico de “transformação social”: os nossos governantes acreditam fielmente que através da repressão penal podem resolver problemas sociais secularmente enraizados em nossa sociedade.

Foi assim que na noite de 12 de abril de 2004, assisti, com um misto de perplexidade e preocupação, no “Jornal da Globo”, apresentado pela jornalista Ana Paula Padrão, a proclamação do “homo homini lupus” hobbesiano por autoridades cariocas e federais, que encontraram a “pedra filosofal” para a contenção da criminalidade e do medo na cidade do Rio de Janeiro: o vice-governador e professor emérito de criminologia Luiz Paulo Conde, proclamou abertamente, em cadeia de televisão, que planejava construir em torno da Favela da Rocinha, um “muro da discórdia” isolando-a de outras favelas da Zona Sul da cidade. Surpreso fiquei somente pela idéia não haver sido professada pelo guru do vice-governador, o eminente professor catedrático de políticas de segurança pública Anthony Garotinho, que no topo de sua cultura vem nos agraciando diariamente com lições mágicas e fórmulas prontas para a contenção da violência.

“Se é muro, se é cerca, se é grade, se não é grade, se é marco delimitatório. O que eu acho na minha opinião é que temos que conter a expansão”. Esta foi a sentença proferida por Conde. Desconhece o emérito professor que, no Brasil, um dia, houve um sistema escravista que confinava seres humanos em senzalas fétidas, enquanto suas vidas eram entregues ao trabalho e ao enriquecimento material do senhor. Com a abolição da escravatura, que não significou sobremaneira abolição das diferenças sociais entre brancos e negros, as portas das senzalas foram abertas para que aquele contingente de miseráveis, agora libertos fisicamente, se aprisionassem em novas cadeias: na dialética da vida, a favela substituiu a senzala e confinou a negritude em seus novos “marcos delimitatórios”. Aqui, em baixo, no lado branco da cidade, construíram-se presídios, caso algum incauto miserável, talvez por falta de informação ou satânico desejo de usufruto das benesses que o consumo oferece nos shoppings centers, resolvesse aqui aportar, ocasionando a desarmonia na estética capitalista. Não à toa se apregoa que na modernidade, não existem mais burgueses e proletários, mas consumidores e não consumidores.

Da senzala à favela; da favela ao cárcere... todas faces da mesmíssima moeda. Mas agora, a proposta do professor Conde nos trás uma nova solução jamais imaginada: cercar a favela, transformando-a em uma penitenciária de segurança máxima. Eureka! Por que não? Por que não cercar a favela de uma vez transformando-a em uma prisão, onde aqueles miseráveis abandonados pelo Estado voltem ao estado de guerra de todos contra todos de Hobbes? A lógica perversa do controle social seria deixar com que os miseráveis se matem entre si.

Mas, transformar a Rocinha em uma penitenciária somente seria o reflexo de uma sociedade que tem na repressão seu valor máximo. O que realmente me assusta é a vontade de transformar a favela não em um cárcere, mas em um campo de concentração! Aí eu estaria diante de uma sociedade muito mais patológica! Se na primeira hipótese eu me encontro diante de uma proposta autoritária, no segundo me encontro diante de uma proposta totalitária! No campo de concentração, tudo é permitido, porque o homem deixa sua humanidade do lado de fora: “deixai, do lado de fora, toda a esperança você, que entra” era a sentença escrita em letras de sangue nos umbrais do inferno de Dante e que poderia estar inscrito em qualquer campo de concentração ou penitenciária moderna.

O totalitarismo possui esta característica fundamental, onde o campo de concentração é a sua imagem: o homem deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser um meio para a busca de outros fins. O Estado absorve o ser humano, e o indivíduo somente passa a ter sentido se visto a partir da ótica e do bem do Estado. O fascismo toma conta do Brasil e os nossos governantes perderam todas as rédeas éticas no trato da coisa pública.

Acredito que esta seja a maior característica de nossa época: vivemos em um Estado totalitário oculto, dissimulado, por assim dizer. Quando George Orwell escreveu seu 1984, tentando descrever um Estado onde o ser humano nada representava, inspirou-se nos regimes totalitários europeus, mas não podia imaginar que as características máximas de sua descrição não se cristalizariam em Estados militarizados como o nazista, mas sim dentro de regimes intitulados democráticos, na modernidade. A alienação, a indiferença, a coisificação do ser humano, a banalização da injustiça, a repressão como método eficaz da política, a submissão do indivíduo ao Estado... tudo isto vemos hoje ocorrer, dentro de democracias vazias e inoperantes que antes representam uma farsa.

Clausewitz, famoso estrategista militar, certa vez afirmara que “guerra é a política continuada por outros meios”. Michel Foucault, posteriormente, inverteria este aforisma afirmando que a “política é a guerra continuada por outros meios”. Eu, humildemente diria – ou constataria – que o direito penal é a política da guerra continuada por outros meios. A imagem bélica toma conta de nossa sociedade, aquilo que Nilo Batista chamou de política criminal com derramamento de sangue...

Mas como não poderia deixar de ser, após a primeira lição de criminologia daquela noite, veio a segunda: em tom solene e austero, o Ministro da (in) Justiça Márcio Thomaz Bastos declarava que “se as circunstâncias concretas indicarem, o Governo Federal lançará mão das forças armadas”. Como dizia o velho Marx, a história sempre se repete duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Farsa qualificada inclusive, que ameaça lançar mão de um recurso que já fora utilizado, no passado, por um déspota “esclarecido”, que certa vez governara estas plagas. O que admira é que a esquerda brasileira, agora no poder, lance mão do mesmo discurso repressivo dos seus antigos opositores, o que Vera Malaguti Batista chamou de o discurso da “Esquerda Punitiva”.

Como se não soubessem nossos governantes que os verdadeiros traficantes usam ternos, gravatas e não moram nos morros do Rio de Janeiro. Muitas vezes detém altos cargos públicos e eletivos. Comandam o crime organizado que conta com apoio de setores podres do Ministério Público e do Judiciário brasileiro, para não dizer da polícia. Nossos governantes sempre atacam os efeitos e fecham seus olhos para as causas da criminalidade. Mas isto possui um valor simbólico e instrumental: nossos governantes não querem realizar as modificações sociais e estruturais que o país necessita. Então, transferem as suas responsabilidades pelo atraso cultural, pela fome, pela miséria, pelo desemprego, enfim, por todos os fatores de destruição dos laços de solidariedade social e da dignidade do ser humano, visto como um fim em si mesmo e que são as verdadeiras causas da violência e da criminalidade, para as mãos das vítimas do sistema. É a lógica do capitalismo tardio, a lógica de culpar o próprio indivíduo pelo seu atraso, pela miséria, pela violência social.

Quando Leonel Brizola foi governador do Rio de Janeiro, proibiu a polícia de subir os morros cariocas. Desejava dar um recado à sociedade: se a dignidade do cidadão é respeitada na zona sul, nos bairros nobres da cidade, deverá ser respeitada também no barraco, porque no interior de sua casa, seja no condomínio fechado, seja na favela, todo homem é rei. Mas foi mal interpretado, porque neste país a dimensão da dignidade ainda não foi estendida para os miseráveis. No Brasil, defensor dos direitos humanos é cúmplice do tráfico!

Enfim, para o nosso deleite, e para fechar a noite com chave de ouro, surgiu a imagem do emérito cientista político Arnaldo Jabor, que ao final de seu discurso proclamou as Forças Armadas, caso o Ministro da Justiça realmente determinasse a invasão dos morros, a serem tão eficientes como foram contra os guerrilheiros do Araguaia, na década de 70, em pleno regime militar. A juventude nunca poderá se esquecer que os militantes do PCdoB que pegaram em armas contra o regime militar e fundaram aquele movimento, quase no final do séc. XX, foram mortos, com raras exceções, tiveram suas cabeças cortadas e dependuradas em postes nos caminhos das cidades vizinhas, como exemplo para qualquer um que se atrevesse a questionar o poder da ditadura brasileira. Mas, salve Jabor: na modernidade, o Direito Penal se transformou no Direito Penal do espetáculo. A mídia nos prestigia com um banquete de sangue e crime. Os noticiários não veiculam imagens ligadas à esfera pública, ocultando os fatos políticos do cidadão comum. Imagens de roubos, homicídios, seqüestros e tráfico de drogas, constituem o cardápio diário do terror: o pânico social se alastra, quebrando os laços de solidariedade das classes trabalhadoras, fomentando o individualismo, mormente porque o estigma do criminoso traz consigo o significado do perigo e do medo, identificado com os não-consumidores. Os espetáculos de suplício das penas infamantes da Idade Média, com seus cadáveres dependurados em postes e corpos esquartejados, não são mais realizados em praça pública diante de espectadores atônitos: agora, nós os vemos pela TV, que nos agracia com um banquete de sangue, crime, terror e medo, diariamente... na hora do almoço!

Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/036/36ccastro.htm

Um comentário:

  1. Boa noite Professor.
    Sou de Maringá acadêmico de Direito da Faculdade Maringá. Participei do seminário em que o senhor foi palestrante e abordou o tema “Processo Penal e Democracia” e gostei muito se sua exposição.
    Sou militante sindical, tenho um modesto blog que fala de política sindical, Direito , etc. Tomei a liberdade de linkar seu blog no meu blog.
    Apareça por lá: www.paulovidigal.net

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