"Nossa cultura é a macumba, não a ópera. Somos um país sentimental, uma
nação sem gravata"
(Glauber Rocha)


terça-feira, 19 de julho de 2011

NOTÍCIAS DE ANTIGÜIDADES IDEOLÓGICAS: alemão retoma sonho de Eisenstein e filma O Capital



Uma maratona de nove horas e meia de duração começa nesta terça-feira, às 10 horas da manhã, e só termina às 22h30 (com intervalos para almoço e lanche) no Sesc Pinheiros: abrindo a mostra de filmes do cineasta alemão Alexander Kluge, será exibida a megaprodução Notícias de Antiguidades Ideológicas: Marx, Eisenstein, O Capital.

Filmado em plena crise econômica de 2008, é o projeto mais radical de renovação do cinema, levado a cabo por um diretor associado à criação do Novo Cinema Alemão, nos anos 1960. Kluge é também um dos mais respeitados literatos de seu país, a ponto de ter em seu filme depoimentos de colegas como o poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger, o filósofo Peter Sloterdijk e o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, modelo assumido de Kluge, conhecido principalmente por seu filme Artistas na Cúpula do Circo: Perplexos (1967), que integra a retrospectiva do diretor, a partir do dia 26, no Goethe-Institut.

Notícias de Antiguidades Ideológicas sai diretamente da tela para o DVD. A produtora e distribuidora Versátil Home Video lança simultaneamente à mostra uma caixa com três discos (R$ 69,90) contendo a versão integral do filme, adaptação dos conceitos contidos no livro O Capital, de Marx — além dos esboços que deram origem ao livro, ou seja, os Grundrisse, versão inicial da crítica de economia política do pensador alemão traduzida (pela primeira vez para o português) pela Boitempo Editorial.

Fazer um filme sobre O Capital é o mesmo que filmar a lista telefônica, com o agravante de que a última ainda permite certo tipo de representação que o ensaio econômico-filosófico de Marx não suporta. Kluge sabia disso desde o começo — ou seja, desde que decidiu concretizar um projeto nunca realizado pelo cineasta russo Serguei Eisenstein, diretor de clássicos como O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro, o filme mais caro bancado pelo governo revolucionário da ex-URSS.

Ao terminar Outubro, em 1927, Eisenstein ficou dois anos com a ideia fixa de filmar O Capital seguindo a estrutura formal literária usada por James Joyce para escrever seu Ulisses. Em 1929, decidido a contar com sua colaboração, procurou o autor irlandês em Paris que, já cego, foi de pouca de ajuda.

Não foi só de Joyce que Eisenstein recebeu um não. Do Comitê Central soviético aos estúdios hollywoodianos, passando pela Gaumont francesa, ninguém quis bancar seu projeto de filmar O Capital usando Ulisses. Se, no livro, Joyce adota o modelo épico homerístico para contar a odisseia de um homem (Leopold Bloom) durante um dia inteiro, Eisenstein, em O Capital, contaria a vida de duas pessoas igualmente perdidas (um casal) num mundo pós-industrial dominado pelo capital.

Um dia basta para resumir toda a história da humanidade na vida de um homem, segundo a lógica de Joyce. Ou de duas, segundo Kluge, que parece não ter dúvidas sobre em que cenário esse casal viveria hoje: o do pós-bolha que abalou o crédito das bolsas e instituições bancárias. Enzensberger, a título de colaboração, sugere que Kluge filme as pessoas abandonando suas casas nos EUA por não poder mais pagar as prestações ao banco.

Kluge, assim como Enzensberger, são da escola de Habermas. Em outras palavras: marxista. Naturalmente discorda de quem acha que a modernidade já deu seu último suspiro. Vendo a China comunista avançar e potências capitalistas ocidentais agonizando na UTI, Kluge sente-se mais ou menos como Eisenstein se sentia em 1929 com o quebra da bolsa de Nova York.

Mais do que fornecer respostas à crise econômica mundial, seu filme fala de gente que se vê como dinossauro — mas que ainda acredita no projeto iluminista da Escola de Frankfurt, como o jovem marxista Fred Walhasch, que escreve para jornais estrangeiros e elabora dossiês. Walhasch diz no filme: "Vivo como o próprio Marx. Ninguém me quer".

Ninguém quer igualmente filmes de 9 horas e meia. Vivemos numa sociedade de espetáculo — e filmar O Capital exige coragem e determinação para ir contra essa tendência e reconstruir a arte cinematográfica de autores como Eisenstein, Murnau, Lang e Bergman. Ao desenterrar o projeto do filme do russo, Kluge tinha em mente unir a filosofia de Kant, Adorno e Habermas — naturalmente atento às inovações sintáticas da literatura de Joyce e à montagem por associações do cinema de Eisenstein.

Assim, Kluge recorre a versos escritos na prisão, em 1871, por Louise Michael, a poeta da Comuna de Paris, mostrados por meio de cartelas (como no cinema mudo), além de usar fragmentos de óperas de Luigi Nono (Al Gran Sole Carico D"Amore), Max Brand (Maquinista Hopkins) e Wagner (Tristão e Isolda, uma montagem dirigida por Werner Schroeter em que os marinheiros da obra de Wagner saem diretamente do Encouraçado Potemkin).

Kluge ainda se apropria, com apetite antropofágico, de um deslumbrante exercício visual do cineasta Tom Tykwer (de Perfume e Corra, Lola, Corra) sobre o fetiche da mercadoria. O filme de Tykwe tem 12 minutos e chama-se O Homem na Coisa. O diretor acompanha os passos apressados de uma garota em Berlim e, no lugar de contar sua história, começa a divagar, acompanhando os movimentos da câmera, que focaliza as maçanetas das portas das casas, os interfones, a bolsa e os sapatos da mulher.

O olho selvagem da câmera penetra na realidade do processo de produção, enquanto o narrador conta a história dos objetos e demonstra, como queria Marx, que uma mercadoria não tem nada de trivial, que ela está cheia de metafísica, de conteúdo teológico.

O filme de Kluge ainda recorre a fragmentos de uma ópera que estreou justamente em 1929, no auge da crise mundial: Maquinista Hopkins, do austríaco Max Brand, incluído na lista dos "entarted" (degenerados) pelos nazistas. Como em Metrópolis, de Lang, Brand fala de um mundo novo nada admirável que surge das máquinas e da depressão econômica.

A ópera se passa nos galpões de uma fábrica e ilustra, no terceiro DVD, como Eisenstein teria incorporado a linguagem operística à sintaxe cinematográfica, além de filmes como Ninotchka, de Lubistch, e peças de Brecht. Kluge realiza o sonho do cineasta russo.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=11&id_noticia=159030

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