"Nossa cultura é a macumba, não a ópera. Somos um país sentimental, uma
nação sem gravata"
(Glauber Rocha)


sábado, 27 de novembro de 2010

Violência no Rio: a farsa e a geopolítica do crime



Coluna do Leitor

25 de novembro de 2010 às 17:39h


O leitor José Cláudio Souza Alves, sociólogo e pró-reitor de Extensão da UFRRJ, contesta as avaliações que predominam sobre a onda de violência no Rio.

Nós que sabemos que o “inimigo é outro”, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar.

Achar que as várias operações criminosas que vem se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias, fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão.

O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos.

De um lado Milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia.

Exemplifico. Em Vigário Geral a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica.

Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de “segurança”.

Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos.

Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônicos na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente, etc.

Assim, ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadan Husein, e depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?

Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas.

Justificar massacres, como o de 2007, nas vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, no qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico.

Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência, afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que o sustenta.

A farsa da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual à paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros.

Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro?

Mas não se preocupem, quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.

Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.

* José Cláudio Souza Alves e sociólogo, Pró-reitor de Extensão da UFRRJ e autor do livro: Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia-no-rio-a-farsa-e-a-geopolitica-do-crime

Rio de Janeiro: combate à criminalidade ou livre concorrência?


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Artigo de Luiz Eduardo Soares: A crise no Rio e o pastiche midiático

Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção?

Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu--, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –ou sob tanta pressão-- quanto os jornalistas.

Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:

(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.

(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –em uma palavra, banido--, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?

(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?

Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes. Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.

Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:

(a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?

Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia. Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?

Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.

A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.
A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.

(b) O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?

Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.

Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia-- teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.

Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.

Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente. O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.

(c) O Exército deveria participar?

Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.
E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.

(d) A imagem internacional do Rio foi maculada?

Claro. Mais uma vez.

(e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.

Palavras Finais

Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo. A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social --um dos melhores gestores do país--, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.

O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar. Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –as bandas podres das polícias-- prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.

Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?

As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.

E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.

Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino "gato orçamentário", esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.

O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas.

Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.

Fonte:http://luizeduardosoares.blogspot.com/

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Quer entender o que é Guerra Cambial e como ela te afeta?


Guerra Cambial é luta de classes em nível mundial

Por: Matheus Felipe de Castro

A grande sacada de Celso Furtado foi perceber que o capitalismo, em nível mundial, não havia se desenvolvido apenas através da lógica capital x trabalho assalariado, mas também sob uma relação a ela transversal: a relação centro x periferia. Assim como o capitalista, para produzir mais-valia (enriquecer) precisava explorar a força de trabalho do operário, as nações da Europa Ocidental e, depois, os EUA, precisavam criar complexas engenharias de transferência de excedentes (riquezas) para suas fronteiras, expoliando as nações localizadas na chamada periferia (primeiro, o roubo puro e simples de madeira, diamantes, ouro, depois o comércio internacional desigual, com a manutenção de suas vantagens comparativas tecnológicas e, por fim, através da financeirização econômica, que torna as nações centrais sócias de toda a produção mundial, recebendo seus dividendos na forma de juros de mercado).

A partir da década de 1970, com o fim do ciclo virtuoso do crescimento norte-americano e a crise do petróleo, os EUA, mediante profunda reengenharia de seu sistema econômico, pensada e efetivada pelo Estado, resolveram se tornar uma espécie de "banco" ou "agência reguladora" do mundo, mediante o controle dos fluxos de capital, através das políticas monetárias implementadas pelo FED (Federal Reserve, o Banco Central dos EUA), na mesma medida em que promoviam, deliberadamente, um processo de projeção de seu parque industrial para outras partes do mundo, com o fim de obter mão-de-obra mais barata do que a do povo americano.

O resultado disso tudo foi que os EUA financeirizaram sua economia, e por intermédio do FED passaram a controlar o vai-e-vem dos fluxos de capital mundial, tornando-se uma espécie de sócio da industrialização dos países periféricos, mediante o crédito fácil do mercado financeiro (fácil em termos, visto que o capital financeiro é uma espécie de "capital motel": entra numa nação periférica no início da noite, "f" com a economia local, se valoriza e de manhã vai embora a procura de novos mercados mais rentosos).

A China, à mesma época, percebendo o movimento norte-americano de desindustrialização/financeirização, chegaram a seguinte conclusão: "Se os EUA estão gestionando para se transformar no banco do mundo, restará um vácuo a ser ocupado por outra nação que aceite ser a fábrica do mundo, geradora de riquezas reais e não meramente fictícias". Foi o que aconteceu realmente, com a China se industrializando rapidamente, ao ponto de ter se tornado uma das mais importantes nações do jogo econômico mundial.

Mas como a bolha um dia estoura, e quando isso acontece os capitais fictícios tendem a se desvalorizar rapidamente com o fim de se equiparar às riquezas reais, quem trabalha com dinheiro (que é mero símbolo de troca entre mercadorias) segura o mico da desvalorização e quem trabalha com mercadorias, continua em posse de sua materialidade, aguardando que, passada a turbulência, os mercados voltem a consumir aqueles produtos reais.

Foi o que aconteceu na crise mundial que se iniciou em 2007: o mercado financeiro norte americano, inchado pela bolha imobiliária, havia concedido crédito fácil para o povo americano comprar imóveis que não podia pagar, e quando o nível de inadimplência subiu às alturas, a bolha explodiu e o dinheiro fictício se desvalorizou rapidamente, contaminando toda a economia norte-americana e européia. Nações como a China e outras em desenvolvimento, como o Brasil, suportaram bem os impactos da crise, porque não haviam mergulhado completamente naquele modelo.

O fato é que os EUA lutam desde 2007 para aplacar os efeitos da maior crise financeira mundial desde 1929, e que ao contrário das anteriores, das décadas de 1980 e 1990, teve seu epicentro no interior da própria economia mais dinâmica do mundo, e não numa nação periférica (como foi o caso da crise Mexicana, Argentina e Asiática). O último lance dessa tentativa é o que os jornalistas e políticos vem chamando de guerra cambial.

O que é a guerra cambial? O Federal Reserve, banco central dos EUA, se tornaram a "agência reguladora" dos fluxos de capital em nível mundial, e isso por uma razão muito simples: ao regular a moeda norte-americana, afetam todas as outras moedas mundiais, eis que, no modelo adotado do padrão dólar-flutuante, todas elas se referenciam naquela.

Ora, diante da crise, o FED encontrou a solução mágica para resolver a sua crise: imprimir mais dinheiro fictício (600 bilhões de dólares), aprofundando ainda mais a lógica que levou ao desencadeamento da crise, o que demonstra que os EUA não podem mais sair dessa lógica.

Ocorre que a inundação da economia mundial com a moeda americana, força o seu preço para baixo, valorizando todas as outras moedas mundiais. O efeito terrível para uma nação quando a sua moeda se valoriza, é que fica mais barato comprar produtos manufaturados de outras nações, pressionando pela queda dos níveis de exportação nacional e pela desindustrialização (ou seja, diminuição dos níveis de crescimento, estagnação, desemprego, etc.). TRADUZINDO: os EUA estão SOCIALIZANDO o seu prejuízo com o resto do mundo. Como na relação capitalista, onde a produção é social e a apropriação é privada, também na relação centro/periferia que se desenvolve em nível mundial, as nações cêntricas forçam para socializar prejuízos, mediante a apropriação da riqueza das outras nações, na forma de juros.

Para nações como a brasileira, que estão capitalizando um ciclo virtuoso de crescimento, os impactos de uma guerra cambial são perversos, principalmente porque foram nações como os EUA que forçaram a adoção do câmbio flutuante na década de 1990. Mas as mesmas nações que impuseram o câmbio flutuante para as nações periféricas (Consenso de Washington), agora implementam políticas deliberadas (disfarçadas de "livre jogo de mercado"), que forçam a desvalorização do dólar de forma artificial, o que significa um "câmbio fixo disfarçado de flutuante". Como dizia o economista estadunidense Ha-Joon Chang, as nações do centro do capitalismo adotam medidas que depois não apregoam para as nações da periferia, "chutando a escada" dos caminhos do desenvolvimento.

Essa situação se reflete concretamente na minha vida e na sua. O Brasil entrou, desde 2002, num novo ciclo de desenvolvimento que melhorou significativamente a vida do povo. Um abalo como esse poderia fazer repetir a crise dos anos 1980, quando o Brasil ainda crescia sob o influxo do "Milagre" (financiado pelo capital norte-americano), tendo visto a "fonte secar" repentinamente, quando o FED (o mesmo, ok?), resolveu aumentar as taxas de juros domésticas norte-americanas, provocando a reversão do fluxo de capital dos países em desenvolvimento para os EUA, e com isso, determinando a estagnação das economicas periféricas, como a brasileira. O efeito todos nós conhecemos: 20 anos de paradeira, desemprego, inflação e outros males da economia globalizada.

Enfim, não se pode ser inocente nessa matéria: o mundo está passando por ajustes que colocam as nações umas contra as outras e um governo responsável com a realização dos interesses nacionais e a defesa de nossa soberania é fundamental num momento como esse. Não serão as livres forças de mercado que trarão a redenção para a humanidade, mas a união de todos e de todas em torno da construção política de um mundo melhor, mais livre, justo e solidário.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O que comemoramos a 15 de novembro?



Por: Matheus Felipe de Castro

"Liberdade, liberdade, abre suas asas sobre nós..."

Nós brasileiros infelizmente tratamos nossos feriados históricos como meros dias de lazer e fuga do trabalho, sem realizarmos uma reflexão mais profunda sobre eles. O 15 de novembro não escapa a essa realidade.

Data histórica da mais alta importância, representa uma das mais importantes transições da história brasileira, ao lado do 07 de setembro e da Revolução de 1930.

O Brasil foi ocupado em 1500 pelos povos europeus, como um capítulo da expansão do mercantilismo europeu, possibilitando a formação do sistema econômico mundial a partir da relação centro/periferia, como tão bem ressaltou Celso Furtado.

Por aproximadamente 400 anos, fomos uma colônia (empresa extrativista e produtora de bens primários para exportação) da Europa, baseados na mais torpe forma de exploração do trabalho já conhecida pela humanidade, a escravidão.

Em 07 de setembro de 1822, tivemos a primeira grande ruptura da história brasileira, com a independência nacional, que significou a criação de um Estado brasileiro independente do colonizador. Com seus erros e acertos, com ou sem grande participação popular, o fato é que o surgimento de um Estado e de uma Constituição (1824) são fatos marcantes da vida de um povo.

No entanto, isso não significou uma independência política e econômica efetiva para o povo brasileiro. De 1822 a 1889, continuamos fundados numa economia escravista e submetidos à velha relação centro/periferia que nos relegava a uma empresa exportadora de matérias primas para a Europa, agora com alguma autonomia, mas sempre predispostos a colaborar para a construção do bem-estar dos povos europeus, sob pena da mais grave destruição e exploração do povo brasileiro.

Em 1888, a grande revolução da abolição da escravidão, que ao contrário do que defendem alguns historiadores de matriz weberiana, teve sim ampla participação popular (a luta dos próprios escravos contra seus senhores, principalmente através das fugas em massa) e de amplas camadas intelectuais médias de nossa sociedade (pequena burguesia) acabou por levar a infra-estrutura social escravista à desagregação, determinando que poucos meses depois, toda a superestrutura estatal que dava sustentabilidade àquele regime implodisse, uma vez retirada a sua base de sustentabilidade. A abolição da escravidão e a Proclamação da República são eventos inseparáveis, porque o escravismo era a base social do Estado monárquico-escravista.

Com a Abolição da Escravidão, em 1888, com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889 e com a promulgação da Constituição Republicana de 1891, surge no Brasil uma forma de Estado qualitativamente diferente daquela que existira até então: um Estado burguês-liberal sem base social burguesa, cujos contornos básicos se encontram descritos na carta constitucional citada.

Esse Estado não encontraria sustentabilidade real e regridiria para uma forma de arranjo das elites de então (Política dos Governadores + Política do café-com-leite), que dominariam a cena política até a Revolução de 1930, sem qualquer possibilidade de participação do povo nos rumos da história: uma forma de semi-escravidão, onde os trabalhadores, se deixaram de ser considerados "coisas" (no sentido do direito real), continuaram de fato subordinados a formas de trabalho servil.

No entanto, se esse Estado e sua Constituição permitiram que as elites dominassem a cena política das décadas seguintes, também permitiram que um forte movimento pequeno-burguês, representado principalmente pelas camadas médias da sociedade (principalmente militares, tenentistas)contestasse o establishment e preparasse aquela que foi a maior de todas as rupturas que sofremos em nossa história, a Revolução de 1930.

Seria na Revolução de 1930 que as velhas elites agrário-exportadoras cederiam espaço para forças políticas mais avançadas. Seria com ela que se iniciaria nossa Revolução Industrial e que, com avanços e reveses, o povo brasileiro iniciaria a história de sua participação perante as instâncias de poder (processo esse que se iniciaria em 1930 e que encontraria o seu lance mais espetacular 70 anos após com a eleição do primeiro operário presidente da República), possibilitando o debate sobre uma independência política e econômica mais efetiva, que ainda está em construção. Mas aqui já é outra história.

O fato, portanto, é que nós não temos a história que gostaríamos de ter, mas temos a história que ocorreu. Compreendê-la e comemorá-la, com todos os seus defeitos e acertos, é compreender que a democracia brasileira não é uma coisa, nem está pronta e acabada. Na verdade, trata-se de um processo de grandes transformações que está em curso e que necessita da ampla participação do povo brasileiro. A liberdade não abrirá suas asas sobre nós se não lutarmos arduamente por ela! VIVA O 15 DE NOVEMBRO! VIVA A REPÚBLICA BRASILEIRA!



Hino da Proclamação da República

Composição: Medeiros / Albuquerque

Seja um pálio de luz desdobrado.
Sob a larga amplidão destes céus
Este canto rebel que o passado
Vem remir dos mais torpes labéus!
Seja um hino de glória que fale
De esperança, de um novo porvir!
Com visões de triunfos embale
Quem por ele lutando surgir!
Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre País...
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis.
Somos todos iguais! Ao futuro
Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro,
Brilha, ovante, da Pátria no altar!

Liberdade! Liberdade!
Se é mister que de peitos valentes
Haja sangue em nosso pendão,
Sangue vivo do herói Tiradentes
Batizou este audaz pavilhão!
Mensageiros de paz, paz queremos,
É de amor nossa força e poder
Mas da guerra nos transes supremos
Heis de ver-nos lutar e vencer!
Liberdade! Liberdade!

Do Ipiranga é preciso que o brado
Seja um grito soberbo de fé!
O Brasil já surgiu libertado,
Sobre as púrpuras régias de pé.
Eia, pois, brasileiros avante!
Verdes louros colhamos louçãos!
Seja o nosso País triunfante,
Livre terra de livres irmãos!

Liberdade! Liberdade!

domingo, 14 de novembro de 2010

Elites jurídicas controlam o sistema Judiciário



Aí galera: vai aí um estudo daqueles que valem a pena ser lidos, porque não ficam discutindo sexo dos anjos, mergulhando de verdade nas grandes conexões que determinam nossas vidas. Velhas elites que perderam espaço na política brasileira, principalmente no legislativo e no executivo estão se aninhando cada vez mais no Poder Judiciário, que vem conformando um poder perigoso e autoritário, na medida em que se tem reservado o poder de "dar a última palavra" em assuntos de poder, numa nação que se orgulha de assentar sobre a "soberania popular". Não à toa, um dos temas da moda na nossa pós-graduação vem sendo os ligados ao "neoconstitucionalismo", que tem uma tendência inexorável a defender fortes discricionariedades por parte do Judiciário, tomado como "guardião da democracia", embora sofra, ele mesmo, de fortes déficits democráticos. Para quem quiser acessar o trabalho, ele está disponível na net no endereço: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-08102010-143600/pt-br.php. Boa leitura!

Por Marcelo Pellegrini - marcelo.pellegrini.filho@usp.br
Publicado em 8/novembro/2010


Em estudo concluído em setembro sobre o sistema jurídico brasileiro, o cientista político Frederico Normanha Ribeiro de Almeida verifica a existência de uma política entre grupos de juristas influentes dentro do sistema jurídico nacional, no sentido de formar alianças e disputar espaço, cargos e poder dentro da administração do sistema. Segundo Almeida, este é um estudo inovador, pois constata um jogo político “difícil entender em uma área em que as pessoas não são eleitas e, sim, sobem na carreira, a princípio, por mérito”.

Em sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, orientada pela professora Maria Tereza Aina Sadek da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o pesquisador identificou, por meio de entrevistas, análises de currículos e biografias e uma análise documental da Reforma do Judiciário, três tipos de elites políticas dentro do sistema Judicial brasileiro: elites institucionais, profissionais e intelectuais.

Segundo ele, as elites institucionais são compostas por juristas que ocupam cargos chave das instituições da administração da justiça estatal, como o Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Estaduais, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Nacional de Justiça( CNJ).

Já as elites profissionais são caracterizadas por lideranças corporativas dos grupos de profissionais do Direito atuantes na administração da justiça estatal, como a Associação dos Magistrados Brasileiros, OAB e a Confederação Nacional do Ministério Público.

O último grupo, as elites intelectuais são formadas por especialistas em temas relacionados à administração da justiça estatal. Este grupo, apesar de não possuir uma posição formal de poder, possui influência nas discussões sobre a área e em reformas políticas, como no caso dos especialistas em direito público e em direito processual.

Características comuns às elites
No estudo verificou-se que as três elites políticas identificadas possuíam em comum a origem social, as Universidades e as trajetórias profissionais. Segundo Almeida, “todos os juristas que formam esses três grupos provém da elite ou da classe média em ascensão e de Faculdades de Direito tradicionais, como o Faculdade de Direito (FD) da USP, a Universidade Federal de Pernambuco e, em segundo plano, as Pontifícias Universidades Católicas (PUC’s) e as Universidades Federais e Estaduais da década de 60”.

Em relação às trajetórias profissionais dos juristas que ocupam essa elite, Almeida aponta que a grande maioria desses profissionais já exerceram advocacia, o que revela que “a passagem pela advocacia tende a ser mais relevante do que a magistratura”. Exemplo disso, é que a maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que são indicados pelo Presidente da República, serem ou terem exercido advocacia em algum momento de sua carreira.”

O cientista político também aponta que apesar de a carreira de um jurista ser definida com base no mérito, ou seja, via concursos, há um série de elementos que influenciam os resultados desta forma de avaliação. Segundo ele, critérios de avaliação como porte e oratória, favorecem indivíduos provenientes da classe média e da elite sócio-econômica, enquanto a militância estudantil e a presença em nichos de poder são fatores diretamente ligados às relações construídas nas faculdades.

“No caso dos Tribunais Superiores, não há concursos, são exigidos como requisito de seleção ‘notório saber jurídico’, o que, em outras palavras, significa ter cursado as mesmas faculdades tradicionais que as atuais elites políticas do Judiciário cursaram”, afirma o pesquisador.

Por fim, outro fator relevante notado nos levantamentos do estudo foi o que Almeida denominou de “dinastias jurídicas”. Ou seja, famílias que estão presentes por várias gerações no cenário jurídico.

“Notamos que o peso do sobrenome de famílias de juristas é outro fator que conta na escolha de um cargo-chave do STJ, por exemplo. Fatores como estes demonstram a existência de uma disputa política pelo controle da administração do sistema Judiciário brasileiro”, conlcui Almeida.

Fonte: Agência USP de Notícias.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Tristeza: manifestações de xenofobia pós-campanha

Serra plantou ódio; Brasil colhe manifestações contra nordestinos

O vídeo que reproduzo abaixo — e também na janela ao lado — é de revirar o estômago. Mas faz um bem danado: lança luz sobre um Brasil que muitas vezes não gostamos de ver. O Brasil do ódio.

Por Rodrigo Vianna, no blog Escrevinhador



A campanha conservadora movida pelos tucanos, a misturar religião e política, trouxe à tona o lodo que estava guardado no fundo da represa. A lama surgiu na forma de ódio e preconceito. Muita gente gosta de afirmar: no Brasil não há ódio entre irmãos, há tolerância religiosa. Serra jogou isso fora. A turma que o apoiava infestou a internet com calúnias. E, agora, passada a eleição, o twitter e outras redes sociais são tomadas por manifestações odiosas.

Como se vê no vídeo acima, não foi só a tal Mayara (estudante de Direito!!!) que declarou ódio aos nordestinos. Há muitos outros. Com nome, assinatura. É fácil identificar um por um. E processar a todos! O Ministério Público deveria agir. A Polícia Federal deveria agir.

E nós devemos estar preparados, porque Serra fez dessas feras da direita a nova militância tucana. Jogou no lixo a história de Montoro e Covas. Serra cavou a trincheira na direita. E o Brasil agora colhe o resultado da campanha odiosa feita por Serra.

Desde domingo, muita gente já fez as contas e mostrou: Dilma ganharia de Serra com ou sem os votos do Nordeste. Não dei destaque a isso porque acho que é – de certa forma – uma rendição ao pensamento conservador. Em vez de dizer que Dilma ganhou “mesmo sem o Nordeste”, deveríamos dizer: ganhou – também – por causa dos nordestinos. E qual o problema?

E deveríamos lembrar: Dilma ganhou também com o voto de quase 60% dos mineiros e dos moradores do estado do Rio. E ganhou com quase metade dos votos de paulistas e gaúchos.

Parte da imprensa — que, como Serra, não aceita a derrota e tenta desqualificar a vitoriosa — insiste no mapinha “Estados vermelhos no Norte/Nordeste x Estados azuis no Sul/Sudeste”. O interessante é ver a votação por municípios, e não por estados: há imensas manchas vermelhas nesse Sul/Sudeste que alguns gostariam de ver todo azulzinho.

No Sul e no Sudeste há muita gente que diz: “não ao ódio”. Se essa turma de mauricinhos idiotas quiser brincar de separatismo, vai ter que enfrentar não apenas o bravo povo nordestino. Vai ter que enfrentar gente do Sul e Sudeste que não aceita dividir o Brasil.

Serra do bem tentou lançar o Brasil no abismo. Não conseguiu. Mas deu combustível para esses idiotas. Caberá a nós enfrentá-los. Com a lei e a força dos argumentos.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=6&id_noticia=140725

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mesmo sem Nordeste, Dilma se elegeria presidente



Depois de uma das campanhas mais acirradas à Presidência da República, a ex-ministra Dilma Rousseff, de 62 anos, se consagrou neste domingo (31) como a primeira mulher a governar o Brasil. A candidata da coligação Para o Brasil Seguir Mudando conseguiu ampliar seu colchão de votos no Nordeste e no Amazonas, além de melhorar seu desempenho em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, segundo e terceiro colégios eleitorais do país.

A conjunção desses fatores assegurou sua folgada eleição. Dilma venceu no Distrito Federal e em 15 estados – a maioria no eixo Norte-Nordeste. Já José Serra (PSDB) virou a eleição em três estados em relação ao primeiro turno — Rio Grande do Sul, Goiás e Espírito Santo — e obteve maioria de votos em 11 unidades da federação, concentrados no Sul e no Centro-Oeste, além de São Paulo.

Era esperada uma alta abstenção, devido ao feriado de Finados e ao término antecipado das corridas estaduais. Apenas 14% do eleitorado nacional, em oito estados e no Distrito Federal, precisaram voltar às urnas para definir o governador – o que contribuiu para uma menor mobilização no segundo turno.

O percentual de eleitores que deixaram de votar foi de 21,39%, entre os 135.804.433 que estavam aptos. A abstenção no primeiro turno, como de costume, foi mais baixa, 18,12%. Em relação aos últimos segundos turnos, a ausência foi maior. Em 2006, foi de 18,99%, e, em 2002, de 20,47%. Neste segundo turno, porém, os votos nulos e em branco – que foram respectivamente de 5,51% e 3,13% em 3 de outubro – caíram para 4,40% e 2,31%.

Com 100% das seções apuradas, Dilma amealhou 55.752.508 de votos (56,05% do total de votos válidos) contra 43.711.350 (43,95%) de José Serra (PSDB). A expressiva vantagem da petista para o tucano – de pouco mais de 12 milhões de votos – ocorreu graças, sobretudo, à sua enorme votação nos estados do Nordeste.

Na região, consolidada como maior reduto eleitoral dos partidos de esquerda, a candidata teve 10,7 milhões de votos a mais que Serra. Mesmo se o Nordeste fosse excluído dos cálculos, Dilma venceria a eleição por um saldo superior a 1,3 milhão de votos – ou 0,9 ponto percentual (50,9% a 49,1%).

Serra não arrasa em SP

Uma mostra das dificuldades da oposição neste pleito foi o resultado final em São Paulo – maior colégio eleitoral do país. No estado governado pelo PSDB há 16 anos e por Serra até abril, a campanha tucana esperava abrir 3 milhões de votos a favor de Serra, para fazer frente ao massacre eleitoral no Nordeste.

Mas os paulistas não corresponderam tanto. No primeiro turno, o tucano venceu Dilma no estado por 40,66% a 37,31%, ao passo que Marina alcançou 20,77%. Já em 31 de outubro, Serra ganhou de 54,1% a 45,9% – uma vantagem de “apenas” 1,8 milhão de votos.

No Paraná e em Santa Catarina, Serra amealhou cerca de 1,1 milhão de votos a mais que Dilma. Foi apenas somando a votação nesses dois estados e em São Paulo que o tucano extraiu tal vantagem de quase 3 milhões de votos.

Nos outros oito estados vencidos pelo candidato do PSDB, o colégio eleitoral era pequeno ou o tucano teve vantagem reduzida – como no Rio Grande do Sul, onde o placar de 51% a 49% significou pouco mais de 100 mil votos de vantagem. Na soma desses 11 estados mais serristas que dilmistas, Serra abriu vantagem de quase 3,5 milhões de votos.

Os trunfos de Dilma

Dilma recuperou essa desvantagem e ainda pôs a diferença de 12 milhões de votos do resultado final ao obter votações maciças no Nordeste, no Amazonas, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Em Minas, a candidata abriu uma dianteira de 1,7 milhão de votos, praticamente anulando a vantagem que Serra obteve em São Paulo.

Depois de vencer no estado por uma margem folgada (46,98% a 30,76%) em 3 de outubro, Dilma obteve 58,4% dos votos (6,2 milhões) na terra de Aécio Neves no segundo turno, contra 41,5% (4,4 milhões) de Serra. A performance do tucano foi 33% melhor (mais 1,1 milhão de votos) e a de Dilma, 22% (mais 1,15 milhão). Mas a diferença manteve-se no mesmo patamar, entre 16 e 17 pontos.

No Rio de Janeiro, terceiro maior colégio eleitoral, o tucano, com 22,53%, ficara em terceiro no primeiro turno, atrás dos 31,52% de Marina Silva. Subiu 17 pontos percentuais, para 39,5% (3,2 milhões). Mas Dilma avançou praticamente o mesmo índice – 16,74 pontos –, indo de 43,76% a 60,5% (4,9 milhões).

No eleitorado fluminense, ela se aproximou do governador Sérgio Cabral (PMDB) – que se reelegeu com 66% dos votos válidos no primeiro turno. Mais do que isso, só com o resultado do Rio e de Minas, Dilma compensou a desvantagem nos 11 estados perdidos para Serra.

O lucro veio do Amazonas e do Nordeste, onde a petista alcançou votações arrasadoras. No Maranhão, Dilma teve seu maior percentual da região (79,09%), seguido por Ceará (77,35%), Pernambuco (75,65%) e Bahia (70,85%). Nestes quatro Estados, Dilma pôs uma vantagem de 9 milhões de votos sobre o adversário.

O estado onde a futura presidente alcançou o seu melhor desempenho percentual foi o Amazonas, com 80,57% (o que significou 865 mil votos a mais que Serra). O melhor desempenho do tucano foi no Acre, com 69,69%. O Distrito Federal, única unidade da Federação vencida por Marina Silva no primeiro turno, foi conquistada desta vez por Dilma.

Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=140630&id_secao=1

Três mitos sobre a eleição de Dilma



Marcos Coimbra: três mitos sobre a eleição de Dilma

Enquanto o País vai se acostumando à vitória de Dilma Rousseff, uma nova batalha começa. Nem é preciso sublinhar quão relevante, objetivamente, é o fato de ela ter vencido a eleição, nas condições em que aconteceu. Ela é a presidente do Brasil e, contra este fato, não há argumentos.

Sim e não. Porque, na política, nem sempre os fatos e as versões coincidem. E as coisas que se dizem a respeito deles nos levam a percebê-los de maneiras muito diferentes.

Nenhuma versão muda o resultado, mas pode fazer com que o interpretemos de forma equivocada. Como consequência, a reduzir seu significado e lhe diminuir a importância. É nesse sentido que cabe falar em nova batalha, que se trava em torno dos porquês e de como chegamos a ele.

Para entender a eleição de Dilma, é preciso evitar três erros, muito comuns na versão que as oposições (seja por meio de suas lideranças políticas, seja por seus jornalistas ou intelectuais) formularam a respeito da candidatura do PT desde quando foi lançada. E é voltando a usá-los que se começa a construir uma versão a respeito do resultado, como estamos vendo na reação da mídia e dos “especialistas” desde a noite de domingo.

O “economicismo”

O primeiro erro a respeito da eleição de Dilma é o mais singelo. Consiste em explicá-la pelo velho bordão “é a economia, estúpido!”.

É impressionante o curso que tem, no Brasil, a expressão cunhada por James Carville, marqueteiro de Bill Clinton, quando quis deixar clara a ênfase que propunha para o discurso de seu cliente nas eleições norte-americanas de 1992. Como o país estava mal e o eleitorado andava insatisfeito com a economia, parecia evidente que nela deveria estar o foco do candidato da oposição.

Era uma frase boa naquele momento, mas só naquele. Na sucessão de Clinton, por exemplo, a economia estava bem, mas Al Gore, o candidato democrata, perdeu, prejudicado pelo desgaste do presidente que saía. Ou seja, nem sempre “é a economia, estúpido!”.

Aqui, as pessoas costumam citar a frase como se fosse uma verdade absoluta e a raciocinar com ela a todo momento. Como nas eleições que concluímos, ao discutir a candidatura Dilma.

É outra maneira de dizer que os eleitores votaram nela “com o bolso”. Como se nada mais importasse. Satisfeitos com a economia, não pensaram em mais nada. Foi o bolso que mandou.

Esse reducionismo está equivocado. Quem acompanhou o processo de decisão do eleitorado viu que o voto não foi unidimensional. As pessoas, na sua imensa maioria, votaram com a cabeça, o coração e, sim, o bolso, mas este apenas como um elemento complementar da decisão. Nunca como o único critério (ou o mais importante).

A “segmentação”

O segundo erro está na suposição de que as eleições mostraram que o eleitorado brasileiro está segmentado por clivagens regionais e de classe. Tipicamente, a tese é de que os pobres, analfabetos, moradores de cidades pequenas, de estados atrasados, votaram em Dilma, enquanto ricos, educados, moradores de cidades grandes e de estados modernos, em Serra.

Ainda não temos o mapa exato da votação, com detalhe suficiente para testar a hipótese. Mas há um vasto acervo de pesquisas de intenção de voto que ajuda.

Por mais que se tenha tentado, no começo do processo eleitoral, sugerir que a eleição seria travada entre “dois Brasis”, opondo, grosso modo, Sul e Sudeste contra Norte, Nordeste e Centro-Oeste, os dados nunca disseram isso. Salvo no Nordeste, as distâncias entre eles, nas demais regiões, nunca foram grandes.

Também não é verdade que Dilma foi “eleita pelos pobres”. Ou afirmar que Serra era o “candidato dos ricos”. Ambos tinham eleitores em todos os segmentos socioeconômicos, embora pudessem ter presenças maiores em alguns do que em outros.

As diferenças no comportamento eleitoral dos brasileiros dependem mais de segmentações de opinião que de determinações materiais. Em outras palavras, há tucanos pobres e ricos, no Norte e no Sul, com alta e com baixa escolaridade. Assim como há petistas em todas as faixas e nichos de nossa sociedade.

Dilma venceu porque ganhou no conjunto do Brasil, e não em razão de um segmento.

O “paternalismo”

O terceiro erro é interpretar a vitória de Dilma como decorrência do “paternalismo” e do “assistencialismo”. Tipicamente, como pensam alguns, como fruto do Bolsa Família. Contrariando todas as evidências, há muita gente que acha isso na imprensa oposicionista e na classe média antilulista. São os que creem que Lula comprou o povo com meia dúzia de benefícios.

As pesquisas sempre mostraram que esse argumento não se sustenta. Dilma tinha, proporcionalmente, mais votos que Serra entre os beneficiários do programa, mas apenas um pouco mais que seu oponente. Ou seja: as pessoas que tinham direito a ele escolheram em quem votar de maneira muito parecida à dos demais eleitores. Em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, os candidatos do PSDB aos governos estaduais foram eleitos com o voto delas.

Os três erros têm o mesmo fundamento: uma profunda desconfiança na capacidade do povo. É o velho preconceito de que o “povo não sabe votar” que está por trás do reducionismo de quem acha que foi a barriga cheia que elegeu Dilma. Ou do argumento de que foram o atraso e a ignorância da maioria que fizeram com que ela vencesse. Ou de quem supõe que a pessoa que recebe o benefício de um programa público se escraviza.

É preciso enfrentar essa nova batalha. Se não, ficaremos com a versão dos perdedores.

* Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi

sábado, 30 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2: o buraco é mais embaixo!


“Tropa de Elite 2”: Boca no trombone

Cloves Geraldo *


Filme de José Padilha identifica as raízes da corrupção e do tráfico, mas os motivos são mais amplos do que o alvo indicado

Tempos românticos aqueles em que o assaltante Lúcio Flávio podia tecer sua máxima: “polícia é polícia, bandido é bandido”, numa espécie de ética dos deserdados. Quarenta anos depois, a divisão entre ambos inexiste como o mostra o diretor José Padilha em seu “Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro”. Neste a ação se dá nos espaços político, familiar e policial, fundindo-os de forma a que o espectador reflita sobre a desestruturação dos sistemas de segurança, político e familiar do país. E descubra, afinal, que eles estão umbilicalmente ligados.

No entanto, a trama centraldo filme não são estas óbvias vinculações, mas o confronto que se dá entre o agora tenente-coronel Nascimento (Wagner Moura) e o militante de esquerda e de direitos humanos, o professor de História Fraga (Irandhir Santos) ao longo de 118 minutos. Desde a abertura em off até o final, os dois se digladiam para configurar uma saída para os impasses enfrentados por ambos, inclusive nos campos político e familiar, que os opõem ferozmente.

Nascimento e Fraga refletem os dois lados do Brasil atual; de um lado os policiais que ainda usam métodos do regime militar, e de outro o militante de esquerda que une a teoria à ação. Duas vertentes que surgem na aula de Fraga, quando ele diz que o Brasil pode se tornar uma imensa prisão de segurança máxima, e no ambíguo jogo a que se presta Nascimento em sua guerra contra o tráfico. Enfim, a violência institucionalizada como conduta do decadente estado burguês e a tentativa hercúlea para se evitar a execução das vítimas deste mesmo estado.

Emana deste confronto, que provoca transformações profundas em Nascimento, as medidas neoliberais que desestruturaram o Estado, mas preservaram os lucros do grande capital. E que, para isto, privatizou tudo que pudesse, nas mãos do estado popular, evitar a pauperismo dos trabalhadores amontoados nos mangues, morros e periferias, desempregados, famintos e sem futuro. E que, devido a isto, parte deles, principalmente seus filhos, acabou atraído para o crime organizado.

Fraga é a consciência da
luta contra a corrupção


Fraga então se torna o instrumento de luta de Nascimento para enfrentar a estrutura de corrupção, centrada no tráfico de drogas. Se em “Tropa de Elite 1”, o grande achado de Padilha foi fazer cair a máscara de certa classe média como sustentadora e, ao mesmo tempo, vítima do tráfico, neste “Tropa de Elite 2”, é esta busca de consciência de Nascimento que torna seu filme diferente. Mesmo que ele navegue, como Ulisses, entre dragões da maldade para reconquistar o filho Rafael (Pedro Van-Held), escape às armadilhas da milícia e se equilibre para sobreviver nos altos escalões da corrupção na Secretaria de Segurança, onde foi “promovido” a subsecretario.

É neste posto que ele obterá o que Fraga detém: a visão da superestrutura de poder do estado. Percebe que tudo se move em função da política e, ao contrário do que ele pensa, é sustentada, naquele momento, pela mídia sensacionalista, as milícias, os traficantes e seus chefes, do secretário de segurança ao governador. É o sistema então que está podre. Uma podridão provocada pela política neoliberal e a falência do Estado burguês, que o espectador antevê nas falas de Fraga, ainda que este não os mencione.

Em princípio, ele, Nascimento vê como saída “o fim da Polícia Militar do Rio de Janeiro”, até que, por influência indireta de Fraga, entende que isto seria insuficiente, sem profunda mudança na superestrutura, que Padilha identifica num belo movimento de câmera (travelling) sobre o Palácio do Planalto. Ótimo achado, feito através do off de Nascimento, porém insuficiente dado que as necessidades são de superação do estado burguês. O espectador, cujo ódio contra as bandas podres da PM, os políticos corruptos e a mídia sensacionalista é aguçado pela trama, entende que é da superestrutura que devem partir as radicais mudanças.

Esta ânsia por medidas radicais se evidencia no comportamento dele, espectador, diante das ações nefastas do coronel Russo (Sandro Rocha), chefe das milícias, da luta incessante de Fraga e das ações de Nascimento. E explodem em prolongadas palmas, quando Nascimento dá vazão a seu ódio contra ao secretario de segurança, durante a defesa do filho Rafael. Ele, espectador, entra literalmente em catarse, exorciza todos os demônios e purga as feridas causadas por um sistema que o martiriza no cotidiano.

Este tema político-ideológico passeia por vários gêneros, político, guerra e ação, para compor a epopéia de Nascimento. Ele e Fraga usam a arma que têm para estancar a sangria. Os verdadeiros chefões da cadeia de produção, financiamento, distribuição e venda, permanecem nas sombras. Estão seguros em suas ilhas, condomínios fechados, gozando a vida. Quem aparece são os “bagrinhos”, os chefões do tráfico dos morros, melancólicos e endinheirados que mal desfrutam a grana acumulada. É o retrato da estrutura de classe burguesa à luz do crime organizado.

“Tropa de Elite 2”. Brasil. Drama. 2010. 188 minutos. Roteiro: Bráulio Mantovani/José Padilha. Direção: José Padilha. Elenco: Wagner Moura, Irandhir Santos, André Ramiro, Pedro Van-Helde, Sandro Rocha, Maria Ribeiro.

* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis, "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

Fotos da semana jurídica da Faculdade Maringá

Professor Matheus Felipe de Castro proferiu a palestra "Processo Penal e Democracia: o sistema acusatório no anteprojeto do novo CPP", no XII Simpósio de Direito da Faculdade Maringá, em 26/10/2010.